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quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

ALFORRIA * Luiz Gama / BA

 ALFORRIA

LUIZ GAMA / BA


 "O que sou e como penso,

Aqui vai com todo o senso,

Posto que já veja irados

Muitos lorpas enfunados,

Vomitando maldições

Contra as minhas reflexões.

Eu bem sei que sou qual Grilo

De maçante e mau estilo;

E que os homens poderosos

Desta arenga receosos,

Hão de chamar-me tarelo,

Bode, negro, Mongibelo;

Porém eu, que não me abalo,

Vou tangendo o meu badalo

Com repique impertinente,

Pondo a trote muita gente.

Se negro sou, ou sou bode,

Pouca importa. O que isto pode?

Bodes há de toda a casta,

Pois que a espécie é muita vasta...

Há cinzentos, há rajados,

Baios, pampas e malhados,

Bodes negros, bodes brancos ,

E, sejamos todos francos,

Uns plebeus, e outros nobres,

Bodes ricos, bodes pobres,

Bodes sábios, importantes,

E também alguns tratantes...

Aqui, nesta boa terra,

Marram todos, tudo berra;

Nobres Condes e Duquesas,

Ricas Damas e Marquesas,

Deputados, senadores,

Gentis-homens, vereadores;

Belas Damas emproadas,

De nobreza empantufadas;

Repimpados principotes,

Orgulhosos fidalgotes,

Frades, Bispos, Cardeais,

Fanfarrões imperiais.

Gentes pobres, nobres gentes,

Em todos há meus parentes .

Entre a brava militança

Fulge e brilha alta bodança ;

Guardas, Cabos, Furriéis,

Brigadeiros, Coronéis,

Destemidos Marechais,

Rutilantes Generais,

Capitães de mar e guerra,

— Tudo marra, tudo berra —

Na suprema eternidade,

Onde habita a Divindade,

Bodes há santificados,

Que por nós são adorados.

Entre o coro dos Anjinhos

Também há muitos bodinhos. —

O amante de Siringa

Tinha pêlo e má catinga;

O deu Mendes, pelas contas,

Na cabeça tinha pontas;

Jove quando foi menino,

Chupitou leite caprino;

E, segundo o antigo mito,

Também Fauno foi cabrito.

Nos domínios de Plutão,

Guarda um bode o Alcorão;

Nos lundus e nas modinhas

São cantadas as bodinhas:

Pois se todos têm rabicho ,

Para que tanto capricho?

Haja paz, haja alegria,

Folgue e brinque a bodaria;

Cesse, pois, a matinada,

Porque tudo é bodarrada".


Luiz Gama

é baiano, nasceu livre mas foi vendido a escravistas por seu pai branco. É filho de Luiza Mahin, liderança abolicionista, negociou com o senhor a sua alforria, pagou-a com trabalho. Se tornou advogado autodidata, defendeu escravizados, organizou rebeliões, é escritor renomado e orador dos mais inflamados. Luiz Gama é o autêntico revolucionário anticapitalista.

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