Trabalho de cuidado, gênero e violências
INTRODUÇÃO
O trabalho no mundo contemporâneo tem sofrido mudanças que influenciam as condições de trabalho e de saúde da classe trabalhadora, sobretudo, desde o final do século passado. A área de prestação de serviços, como é o caso da saúde, também tem sido acometida pela reestruturação produtiva do capital. São observadas a redução de gastos com contratos trabalhistas, a diminuição do número de trabalhadores/as, a terceirização de profissionais em setores públicos (médicos/as e enfermeiros/as) e, por consequência, a intensificação do trabalho. Esta é uma realidade que coloca em risco as condições de trabalho e de saúde da classe trabalhadora1.
Com isso, é importante tratar sobre as especificidades do trabalho de cuidado realizado no âmbito público (hospitais, centros de saúde e de referências etc.), por ser uma atividade remunerada e exigir formação profissional especializada na área da saúde. Partindo do pressuposto de que a enfermagem é uma profissão que foi, ao longo do tempo, realizada especialmente pelas mulheres, e ainda é predominantemente feminina (85,1%), com a força de trabalho maciça de técnicos e/ou auxiliares (77%)2, a categoria analítica de gênero3 torna-se central para compreender o cotidiano das atividades que os/as trabalhadores/as de enfermagem realizam.
Tomar as análises das relações de gênero permite compreender os modos de organização no mundo do trabalho, pois é a partir da concepção da divisão sexual que se verifica, de modo geral, que o trabalho dos homens é mais valorizado que o das mulheres. Ademais, há profissões predominantemente femininas, como é o caso da enfermagem. Associado a isso, o trabalho doméstico na sociedade brasileira ainda é realizado, sobretudo, pelas mulheres3, mesmo quando estas possuem companheiros.
Sendo assim, a perspectiva analítica dos estudos do care tem se consagrado no Brasil a partir das contribuições de autores4-6. O trabalho de cuidado é considerado relacional, com dispêndio de atenção, solicitude e atendimento às necessidades humanas e perpetuação da vida: “[...] é ao mesmo tempo trabalho emocional e trabalho material, técnico. Nele são indissociáveis postura ética, ação e interação”4:3. Ele tem como características a invisibilidade, pois nem sempre são perceptíveis os sofrimentos e os prazeres sentidos e produzidos nas relações sociais, as aprendizagens, os saberes e os fazeres diante das dificuldades enfrentadas7.
O cuidado é o savoir-faire da enfermagem e engloba as atenções, as solicitudes, as ações nem sempre visíveis, como o “saber fazer discreto”8:278, os conhecimentos aprendidos na formação e/ou no cotidiano das atividades para lidar com o sofrimento do outro. Por meio dele, são encontrados desafios como a morte, as vulnerabilidades das pessoas cuidadas e o esgotamento profissional. Nesse sentido, a compaixão (sofrer com o outro) dos/as enfermeiros/as é considerada uma estratégia para a construção e a manutenção da saúde no trabalho em uma atividade que perpassa pelas emoções e pelo medo da “contaminação, erro, violência”8:267.
Se tal como propõe a psicodinâmica do trabalho e os estudos sobre o cuidado8, de que as atividades de enfermagem podem perpassar situações de violência, ao discuti-las no mundo do trabalho é importante considerar a complexidade dos fenômenos que as envolvem, como os prejuízos físicos e/ou psicológicos, a ausência de direitos referentes ao trabalho, as negligências e as precárias condições de trabalho, que colocam em risco a saúde e a vida, além do adoecimento vinculado às atividades laborais9. O documento oficial da Organização Internacional do Trabalho (OIT) aponta que as violências nos locais de trabalho podem atingir milhões de pessoas no mundo. Entre os profissionais que mais correm riscos elevados na área de saúde para as violências no trabalho estão os/as enfermeiros/as, técnicos/as e auxiliares, profissionais de ambulâncias e médicos/as. Entre os tipos de violência estão as físicas e psicológicas, como as agressões, o assédio moral e sexual, os abusos, as intimidações, as ameaças e as discriminações raciais10.
O trabalho de cuidado é complexo11 e está para além das situações de violências que possam ser vividas pelos/as profissionais de saúde. No entanto, as violências percebidas e vivenciadas nas atividades de cuidado podem colocar os/as trabalhadores/as em conflitos e constrangimentos, de modo que suas emoções podem ser influenciadas diante de assédios, agressões, intimidações e violência estrutural e social. Em relação às influências da violência na saúde de enfermeiras/os, autores12 destacam: estresse pós-traumático, sentimentos de medo, culpa, impotência, angústia, ansiedade, traumas psicológicos, diminuição da satisfação no trabalho, além de considerarem a violência como um problema social invisibilizado, e que pode influenciar o cuidado em saúde.
Sendo assim, a questão que norteia esta pesquisa é: quais são as condições de trabalho e as situações de violência expressas por técnicos/as de enfermagem? Este artigo tem como finalidade analisar as condições de trabalho e as violências vividas por profissionais de nível médio-técnicos/as em enfermagem na área hospitalar.
MÉTODO
Inicialmente, esta pesquisa com abordagem qualitativa e referencial teórico da divisão sexual do trabalho3, intencionou analisar as atividades de cuidado desempenhado por técnicos/as de enfermagem, bem como os percursos profissionais e de formação, investigando as ações e as dificuldades no trabalho de cuidado hospitalar. Entretanto, por meio da coleta de depoimentos, os aspectos relativos às violências no trabalho foram identificados na pesquisa, mesmo sem ter sido objeto dela.
Assim, considera-se que a pesquisa qualitativa busca compreender as relações sociais e tem como “[...] matéria-prima opiniões, crenças, valores, representações, relações e ações humanas e sociais sob a perspectiva dos atores em intersubjetividade”13:626. Desse modo, a história oral como aparato metodológico se fez importante, pois foi possível apreender e analisar as representações sociais e culturais, o processo histórico14 do trabalho de cuidado, as dificuldades do cotidiano e as formas como as enfrentam.
Para a apreensão das representações sobre o trabalho que realizam, foi utilizada a coleta de depoimentos orais por meio de entrevistas semiestruturadas com sete mulheres e dois homens de um hospital público da região sudeste do país, com a finalidade de obter as “narrativas da experiência humana”15:18 sobre o trabalho que desenvolvem no cuidado de pessoas. A coleta dos depoimentos nem sempre: “[...] abrange necessariamente a totalidade da existência do informante [...]”15:21. Entretanto, neste caso, é possível dizer que os depoimentos auxiliaram na apreensão das experiências dos/as entrevistados/as, à medida que foram rememorando os fatos e os acontecimentos do trabalho diante dos obstáculos vividos.
Inicialmente, foi solicitada a autorização à enfermeira responsável do hospital, e, em seguida, o projeto foi encaminhado ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP). A escolha dos sujeitos se deu por meio de contato com a equipe de plantão para solicitar aos/às profissionais interessados/as à cessão de depoimentos orais. Houve uma recusa por causa da ausência de tempo da trabalhadora. As entrevistas foram feitas no período da tarde, entre os meses de maio a outubro de 2015, no próprio hospital no qual trabalhavam.
Todas as entrevistas foram gravadas, transcritas em meio digital e entregues em cópia impressa aos participantes. Todas as observações do cotidiano de trabalho e das percepções das entrevistas foram registradas em diário de campo16. A pesquisa foi aprovada pelo CEP da Instituição (Parecer nº 769.315, de 11/09/2014). Os nomes dos/as depoentes foram substituídos para garantia do sigilo.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Com relação aos vínculos empregatícios encontrados, cinco trabalhadores/as eram concursados/as (estatutários/as) e quatro eram terceirizados/as, sendo que o salário dos/as estatutários/as era quase o dobro dos/as terceirizados/as. Isso reafirma a redução dos gastos públicos com os encargos trabalhistas em decorrência do processo de terceirização, o que já é observado na área da saúde1.
Considera-se que a forma como o trabalho está organizado e as suas condições são essenciais para compreender a relação entre a subjetividade, os desafios impostos pelas atividades e as formas como lidam diante deles. Portanto, apropriou-se da concepção de autores17:410 que analisam o contexto dos adoecimentos relacionados ao trabalho como aqueles “[...] processos que resultem da exposição do trabalhador a condições de trabalho nocivas à sua saúde e que gerem como desdobramento o adoecimento físico e mental”. Na mesma perspectiva, associam os acidentes de trabalho que podem levar a óbito ou não, “[...] geralmente causadores de lesões e ferimentos no corpo, fraturas, mutilações, entre outros impactos físicos” 17:410.
Sobre as condições de trabalho, alguns/algumas depoentes relataram suas dificuldades diante da redução do número de trabalhadores/as para o cuidado em saúde, além da ocorrência de acidentes de trabalho (doenças e acidentes com materiais perfurocortantes). As condições de vida precárias da população atendida pela enfermagem geram sofrimento nos/as trabalhadores/as, assim como a escassez dos recursos materiais e humanos no cuidado:
No meu trabalho, eu, eu, fico muito triste [de] olhar e ver material faltando profissionais de saúde. Acho que tem muito doente. Chega a não dar conta de tudo. [...] muitos pacientes, e poucos profissionais de saúde. Aí, isso me deixa triste, não é? [...] muitos pacientes, e poucos profissionais de saúde. Aí, isso me deixa triste, não é? [...] E os hospitais, às vezes, não têm roupa de cama, nem têm medicamentos necessários, e os pacientes. Os familiares ali [ênfase] coitados, gente sem saber mesmo o que está acontecendo na área. (Violeta).
O problema é o pessoal, não é? É muito pouco pessoal para trabalhar, que o paciente, ele exige muito de você, nós somos uma equipe, uma equipe de dois é pouco. É certo uma equipe de três, quatro para trabalhar bem com o doente [...] A gente nunca pega uma equipe grande na enfermagem, sempre equipe pequena, sempre a equipe reduzida. (Jacinto).
Muitos pacientes para pouco profissional, exatamente. Estrutura de trabalho ruim, muitas coisas ruins. Agora com a terceirização da saúde pública que eles estão querendo fazer, não é? [...] Eles estão tentando exterminar o funcionário público, não é? E está difícil, está muito difícil. (Lírio).
De acordo com esses relatos, a forma de organização do trabalho, como o “enxugamento” do número de trabalhadores/as para o cuidado em saúde, é um dos desafios para alguns/algumas depoentes. Tal achado corrobora o processo advindo com a reestruturação produtiva e a precarização do trabalho, inclusive na área de saúde1. Em decorrência da economia dos encargos trabalhistas, há redução de postos de trabalho e do número de trabalhadores/as, e, portanto, essas condições podem contribuir para fomentar as violências perpetradas pelos usuários dos serviços18. No entanto, pelos depoimentos, não se verificou essa relação. O pequeno número de profissionais foi relatado apenas como uma das formas de não prestar o cuidado considerado “ideal”, sendo que há relatos de tristeza e sofrimentos ao não conseguirem realizá-lo do modo como gostariam.
As condições de trabalho são centrais para o desenvolvimento do cuidado em saúde, pois, de acordo com uma pesquisa canadense, as enfermeiras relataram que uma das centralidades do trabalho de cuidar era a interação com as pessoas atendidas. Foi verificado que os aumentos dos níveis de estresse e de frustração estiveram relacionados à escassez de trabalhadores/as por causa da impossibilidade de dar atenção adequada às pessoas cuidadas por elas19.
Além disso, é relevante enfatizar que, a partir dos estudos da teoria do care e da psicodinâmica do trabalho, autoras20 mostram que as atividades de enfermagem estão relacionadas com os processos da organização do trabalho, que ao reduzir o número de trabalhadores/as por pessoas cuidadas, há sobrecarga de um trabalho, que é considerado desvalorizado, pouco reconhecido e que leva às experiências de violências e assédios. Ou seja, a enfermagem é uma profissão que está em constante risco à saúde20. No Brasil, de acordo com as Normas Regulamentadoras (NR)21, os riscos ocupacionais incluem os físicos, os químicos e os biológicos. É preciso ressaltar ainda que a legislação brasileira específica para profissionais da área de saúde (NR32) considera a necessidade de proteção e ações para prevenção dos riscos de acidentes com materiais perfurocortantes, além das doenças relativas ao trabalho21.
Com relação aos acidentes de trabalho, uma trabalhadora relatou ter se acidentado com um escalpe que penetrou no seu dedo. Todos os exames para o diagnóstico e a prevenção de doenças foram realizados e não houve consequências mais sérias para a saúde:
Foi um paciente [que] foi fazer um exame, tinha um escalpe, não é? E é aquele que é o, não é aquele de plástico bisel. Aí eu peguei a curva, não é? Fiz tudo bonitinho, não é? Não sei o quê. Aí quando eu passei por um outro quarto, eu vi um sangue voltando. Quando eu mudei de mão, eu estava de luva. O escalpe entrou no meu dedo. Como é que pode, não é? É por isso que eu falo. Quanto mais atenção você tem, tem que ter muito mais atenção, porque realmente acidentes eles acontecem, não é? (Sálvia).
Por meio do depoimento de Sálvia, percebe-se que a atenção e o zelo fazem parte do cotidiano desses/as profissionais. As atenções, as preocupações e as disposições desprendidas são o cerne do cuidado realizado, sobretudo pelas mulheres diante do sofrimento humano e das vulnerabilidades de seus corpos7.
Uma questão a ser considerada são as repercussões do trabalho no corpo ao longo do tempo, pois as trabalhadoras mais antigas, que iniciaram as atividades no hospital na década de 1980, relataram doenças como os distúrbios osteomusculares e as dores no corpo. Em decorrência das atividades físicas de levantamento de peso (mobilização de pessoas no leito, carregamento de objetos e deslocamentos) e do processo de envelhecimento, algumas técnicas de enfermagem foram alocadas para a Central de Material e Esterilização, sem contato direto com os pacientes do hospital. Nesse local, realizam o trabalho de preparação, esterilização e distribuição dos materiais utilizados nas enfermarias e ambulatórios. Ao ser questionada sobre desenvolvimento do seu problema de coluna, Violeta disse que “deve ter sido trabalhando” e ainda:
Eu, por exemplo, eu tenho de vez em quando problema no joelho, de vez em quando. Então a chefia... Tem que fazer curso, tudo né? Pegar paciente. Aí achou melhor eu ficar aqui. E coluna, né? (Violeta).
A atividade de cuidado tem a sua dimensão física, pois o esforço corporal para cuidar de outra pessoa22 põe, por vezes, a saúde em risco. E, ao considerar as relações de gênero nos estudos do trabalho3, é possível dizer que o fato de essas técnicas de enfermagem serem mulheres e realizarem também os trabalhos domésticos têm influências na saúde e no corpo ao longo da experiência profissional.
Sobre a violência urbana/social, um técnico relatou que, em um antigo hospital no qual trabalhou, vivenciou a morte de uma criança acometida por disparo de um projétil de origem não conhecida, tendo se sentido muito mal por alguns dias:
Aquilo ali acabou com meu plantão, eu chorava igual criança. [...] E dali eu fiquei uns dias mal. Não consegui mais trabalhar, na mesma hora eu liguei para casa para saber da minha filha como que estava e tal. Falando para a minha esposa para não sair na rua [...] Ele veio a falecer, infelizmente, não é? Fizeram tudo o que tinham para fazer, mas não foi possível. Aí aquilo ali me deixou. Foi a única vez que eu fiquei uns dias bem mal, bem mal. (Lírio).
A violência é uma das realidades dos grandes centros urbanos no Brasil, e engendra a complexidade da vida cotidiana: o uso de armas de fogo, os casos de homicídios, roubos e/ou furtos, sequestros, tráfico de drogas, entre outros. Dessa maneira, as desigualdades sociais e econômicas e seus contextos históricos são importantes para a compreensão das violências23. Esse cenário é primordial também para compreender a relação entre a violência urbana e o trabalho em saúde. Por ser um trabalho de cuidado envolto por emoções21, pode-se dizer que a violência sofrida pela criança, levando-a à morte, contribuiu para o sofrimento desse trabalhador que ficou triste e envolvido pelo sentimento de inconformidade diante do ocorrido: “Com sua infinidade de manifestações, a dimensão emocional impõe uma maior complexidade das análises do trabalho, bem como de suas relações com a saúde física e mental”22:48.
É preciso ressaltar ainda, o caráter do trabalho emocional no cuidado em saúde, pois é por meio dele que são construídas as emoções face aos desafios. Ou seja, permitir-se chorar ou não é uma aprendizagem que é realizada ao longo das atividades profissionais. De fato, acredita-se que o trabalho de cuidado está para além dos saberes científicos adquiridos nos cursos formais da aprendizagem (graduação ou técnico de enfermagem). São necessários os saberes para “[...] a empatia, a escuta, o diálogo, a ternura e a compaixão. As qualidades tradicionalmente atribuídas às ‘mulheres’ ou à feminilidade [...]”20:165, não deixam de ser construções sociais do savoir-faire da enfermagem e são as representações de feminilidade para o cuidado em saúde. Portanto, mesmo Lírio sendo homem em uma atividade predominantemente feminina, o choro foi expresso como um sentimento de tristeza por causa da morte da criança.
O trabalho de cuidar toma as suas múltiplas dimensões22 quando são apontadas pelos/as depoentes os obstáculos diante da morte, do sofrimento e da recusa do diagnóstico de HIV/AIDS pelas pessoas atendidas. As técnicas de enfermagem, com mais tempo de trabalho no hospital, expressaram como foram os primeiros atendimentos de casos de HIV no Brasil. Reiteraram que as relações interpessoais no cuidado nem sempre foram harmoniosas:
Tinha uma época que [o paciente] queria bater em uma enfermeira que tinha, ali tinha um canivete, aí falava “eu vou fazer na tua cara como eu fazia com aquelas mulheres”. (Sara).
Para Sara, o início do cuidado com pessoas com AIDS foi influenciado pelo desconhecimento do tratamento e das formas de transmissão da doença, mas foi superado pela formação em cursos da área de saúde, pela mídia e no cotidiano de trabalho: “usando todo o material para nos proteger, a luva, a máscara, tudo. Mas fomos aprendendo e deixando o medo de lado, o cuidar era importante” (Sara). Outra entrevistada ressaltou a revolta de muitas pessoas ao se depararem com o diagnóstico do HIV, entendendo a dificuldade de aceitação de uma doença permeada pelos estigmas e preconceitos sociais.
Esses achados são semelhantes à pesquisa brasileira sobre os sentimentos de profissionais da saúde nos atendimentos de pessoas com AIDS no início da epidemia. Houve medo, receios da contaminação e desconhecimento da doença por parte dos trabalhadores/as. Da mesma forma, foram relatadas as indignações, revoltas, estigmas das pessoas com AIDS, dificuldades na aceitação do diagnóstico pelos pacientes e familiares24.
Ainda que as depoentes tenham verbalizado as agressões verbais e ameaças por parte de alguns pacientes, em nenhum momento expressaram raiva e/ou lidaram com agressividade diante deles. O fato de entenderem o momento de vulnerabilidade deles e os estigmas em torno do HIV fez com que elas aprendessem a lidar nesses casos, como expressa Tulipa:
Porque, quando ele descobre que está com HIV, ele fica com ódio do mundo, não é? A gente tem que entender. Isso eu sempre... Sempre entendi. Paro para pensar, se fosse comigo, eu não gostaria que fosse assim, entendeu? (Tulipa).
Ficou bem claro, por meio dos depoimentos, que as ações de cuidado quando do início do tratamento do HIV foram construídas coletivamente pela equipe de saúde, e do suporte emocional e psíquico recebido pelos/as profissionais da área de psicologia, como apontado no diário de campo:
O interessante dessa pesquisa foi conhecer o trabalho de uma pessoa que vivenciou o início dos atendimentos de HIV no Brasil. Ela diz [técnica de enfermagem] que há melhoras no tratamento, na sobrevida e na qualidade de vida dos pacientes. No começo foi difícil, mas percebeu que lá no [hospital] havia um maior controle pensando na “saúde do trabalhador”. Ou seja, médicos e enfermeiros explicavam a eles (técnicos) as formas de contágio da doença, tranquilizando-os. [...] Ela diz que houve tratamento psicológico para acompanhar os/as trabalhadores/as nesse momento. (Diário de Campo, 22 de maio de 2015).
Considera-se que o trabalho de enfermagem relacionado ao cuidado e a promoção da vida das pessoas doentes ou não, deve ser analisado segundo a perspectiva das condições de trabalho e das exigências do trabalho emocional diante dos conflitos. Em outras palavras, o trabalho emocional que os/as técnicos/as de enfermagem vivenciam diante das violências, deve estar na compreensão do que fazem e como fazem o cuidado humano, pois muitos/as estão expostos/as às humilhações por parte de quem está sendo cuidado ou por seus familiares, tendo que suportar uma relação mais dura ou até situações de violências.
Os impedimentos e os obstáculos encontrados diante das condições precárias e/ou de situações de violências podem fazer com que esses/as profissionais não exteriorizem suas emoções, o que contribui para uma sobrecarga em seu trabalho emocional, tal como coloca um estudioso da área22. O trabalho é portador e produtor de emoções. Nele os/as trabalhadores/as podem ou não expressar sentimentos de raiva, aversão, satisfação ou prazer, colocando em risco à saúde do/a profissional, como os casos de esgotamento no trabalho25. Mesmo diante das dificuldades no trabalho de cuidado, todos/as entrevistados/as disseram estar satisfeitos/as com as atividades realizadas e desejavam permanecer na profissão.
Ao relatarem as diferenças entre o trabalho no início da carreira e na atualidade, sinalizaram as melhorias: estudaram mais e conseguiam entender o processo de adoecimento e dos tratamentos de pessoas com HIV. Além disso, são evidenciados os sentimentos de orgulho e o desejo de permanecerem no cuidado.
CONCLUSÃO
Embora este artigo tenha trazido ao centro do debate as condições e as violências no trabalho de enfermagem de maneira sucinta, suas abordagens não devem desconsiderar suas complexidades. As influências das desigualdades sociais e econômicas brasileiras, assim como as condições de trabalho e a forma de organizá-lo para o cuidado em saúde, não estão desarticuladas das contradições da sociedade capitalista.
O trabalho de cuidado, realizado pelos/as profissionais de enfermagem, não deixa de estar inserido em uma sociedade em que as mulheres estão na linha de frente dessa atividade profissional. Sendo assim, as categorias analíticas das relações de gênero e dos estudos do care podem fazer compreender o modus operandi das relações que elas estabelecem diante dos desafios que as atividades impõem. A compaixão, a sensibilidade, o colocar-se no lugar do outro, as emoções elaboradas no cuidado devem ser centrais nas análises sociológicas do trabalho em enfermagem. Além disso, o aspecto emocional diante dos conflitos nas relações sociais e, sobretudo, no cuidado em saúde é primordial para o debate na formação de profissionais de saúde.
Ao se considerar que a violência é influenciada pelos contextos sociais e históricos e pode repercutir na vida e na saúde das pessoas26, destaca-se a importância do aprofundamento teórico e metodológico, em futuras pesquisas sobre o cuidado em saúde, das violências relacionadas ao trabalho e suas especificidades de uma profissão predominantemente feminina.
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