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domingo, 29 de janeiro de 2023

Janeiro de 2023: as Forças Armadas e o enfrentamento da crise * Maria Carlota Souza-Paula / Brasil

Janeiro de 2023: as Forças Armadas e o enfrentamento da crise 

Maria Carlota Souza-Paula


Após os execráveis fatos do dia 8 de janeiro, a alguns amigos expressei a opinião que “enquanto não soubermos com clareza a posição de segmentos importantes das Forças Armadas não poderemos estar tranquilos”.

Um amigo me pediu que esclarecesse um pouco mais essa opinião. É importante lembrar que se trata de um jovem, com vivência política pós redemocratização. Embora muito bem formado e informado, com grande interesse nos assuntos políticos, seu período de experiência coincide com o que poderíamos considerar como um tempo em que as Forças Armadas no Brasil estavam preponderantemente atuantes nos campos de suas atribuições constitucionais, sem claramente expressar preferências partidárias e ideológicas. Exceto, claro, nos últimos 4 anos, quando isso mudou radicalmente e houve uma fortíssima militarização do governo e envolvimento político dos militares.

Outros amigos, atuantes na política, estudiosos e analistas das questões militares e de estruturas de poder no Brasil, ou das áreas de ciências políticas e sociais, entre outras, podem achar as opiniões abaixo muito óbvias ou muito pouco elaboradas. No entanto, o objetivo aqui não é fazer um ensaio, mas apenas colocar algumas questões que me parecem importantes para esclarecer minha opinião inicial ou mesmo para iniciar um debate. Nesse sentido, sintam-se livres todos que quiserem adicionar elementos, contestar as opiniões aqui expressadas, enfim, refletir um pouco sobre o tema.

Voltando então à minha opinião inicial, de que não podemos estar tranquilos sem conhecer a posição de importantes segmentos das Forças Armadas, preciso colocar dois elementos preliminares de aclaração:

∙ Primeiro, minhas opiniões são baseadas exclusivamente em conhecimentos anteriores e reflexões pessoais sobre os fatos do momento, sem base de pesquisa sobre a situação atual. Não tenho estudado o tema há muito tempo;

∙ segundo, quando falo de “apoio” de segmentos das Forças Armadas, não digo que devemos esperar militares “lulistas” … não creio que existam. Falo sim de militares que se colocam pela “legalidade”, que reconhecem e respeitam o resultado das eleições, enfim, aqueles que jogam no time de que militares não devem agir politicamente, militares não golpistas. Saber hoje se estes existem, quais são e qual sua força e influência sobre as instituições e estamentos

militares é o que considero importante. Mas nem isso sabemos. E creio que as informações mais recentes (particularmente as falas do Lula e do Dino sobre o dia 8), dias depois que eu já dera minha opinião inicial, deixam ainda mais dúvidas sobre o quadro atual e sobre os problemas a serem enfrentados pelo atual governo para manter-se estável e conseguir governar.

Assim posto, considero alguns fatos da história do Brasil que embasam minha opinião:

∙ Neste país, nenhum governo se sustentou sem o apoio de militares) e creio e em nenhum país que não tenha sistema democrático consolidado); seguem-se apenas alguns exemplos:

o a própria Proclamação da República foi um golpe, seguido de governo militar; a “era Vargas” se inicia e termina como golpe; é longa a lista de golpes no Brasil, bem sucedidos ou não. E não apenas golpes militares, mas, na maioria das vezes, articulados com forças políticas civis (1930, 1955, 1964, 2016);

o vários militares, antes da ditadura 1964-85, já presidiram o Brasil; até o governo considerado por alguns como o primeiro período democrático no Brasil e no qual se promulgou a Constituição de 1946 foi um militar, o Presidente Dutra, marechal do exército.

o mostra bem a importância dos militares na política brasileira o fato de que os dois principais candidatos à Presidência após a queda de Vargas, em 1945, eram militares: pelo PSD, Eurico Gaspar Dutra, marechal do exército, e Eduardo Gomes, Brigadeiro da Aeronáutica, pela UDN! Ou seja, os dois principais partidos políticos não tinham candidatos civis;

o JK, figura lembrada por sua grande popularidade e realizações, pertencente a partido conservador –mas que enfrentava forte oposição de outro-, só se manteve no poder graças às FA, até para garantir a sua posse. E para enfrentar outras tentativas de golpes como Jacareacanga e Aragarças. Tão forte era o vínculo que o seu candidato a sucede-lo foi o então ministro da Guerra, Marechal Henrique Lot (que perdeu para Jânio Quadros).

o o golpe de 1964 e os 31 anos de ditadura culminam, assim, décadas e décadas de golpismo no país. Deste longo triste período são bem conhecidos os fatos e consequências.

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o Portanto, as cúpulas militares no Brasil quase sempre se posicionaram politicamente apesar da máxima de que a corporação, teoricamente, não poderia ser politizada;

o Nessa situação, em que parte das FA se politizam, automaticamente, sobretudo em situação polarizada, como a atual, a parte que se mantém fiel à posição de não intervenção política e defesa constitucional também acaba sendo considerada como política, na medida em que se está opondo àqueles que se posicionaram expressa e voluntariamente contra o governo estabelecido. É o que acontece agora …

Durante o período de 1985 a 2017/18, antes da primeira candidatura de Bolsonaro à Presidência, as FA se mantiveram relativamente afastadas da política e conviveram com os presidentes civis, aparentemente sem grandes conflitos, ou conseguindo uma convivência pacífica. Foi o período mais longo de governo democrático, sem tentativas de golpe, até o governo de Dilma Roussef. Desde então, a militarização vem crescendo a olhos vistos, embora de forma diversa de épocas anteriores.

A principal diferença é que essa militarização se constituiu em um governo legítimo, eleito em 2018. Neste sentido, não se pode falar de “golpe”. A militarização foi promovida por aquele governo e se deu pela forte participação nos organismos do poder executivo e, nesta condição, com poder decisório sobre orçamentos e questões fundamentais do Estado, fazendo e executando políticas públicas, inclusive em áreas muito alheias às funções e atuações anteriores das FA, como a saúde. Todos conhecemos esse filme.

A principal diferença é que essa militarização se deu por meio de um governo civil legítimo, eleito em 2018. Neste sentido, não se pode falar de “golpe”. A militarização foi promovida por aquele governo e se deu pela forte participação nos organismos do poder executivo e, nesta condição, com poder decisório sobre orçamentos e questões fundamentais do Estado, fazendo e executando políticas públicas, inclusive em áreas muito alheias às funções e atuações anteriores das FA, como a saúde. Todos conhecemos esse filme.

Ao mesmo tempo, como parte do mesmo processo, cresceu a polarização que já se mostrava forte com o anti-lulismo/anti-petismo, elemento definidor das eleições de 2018. No governo Bolsonaro, foram se acirrando as posições de “defesa” da Pátria, da família e dos bons costumes, com traços de fundamentalismo. Como analisam muitos, os evangélicos, sua luta pelo poder, suas crenças e preconceitos, apoiados e

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promovidos pelo governo foram uma força importante nesse processo de radicalização conservadora. Mas não foram os únicos! A sociedade brasileira, em grande parte, independente da religião, é conservadora, preconceituosa e elitista. Repete-se então o apoio dado ao golpe de 1964, em defesa desses valores e dos privilégios. Antipetismo, busca de poder por grupos religiosos e defesa de tudo que representa esse conservadorismo, instigados e apoiados pelo governo Bolsonaro, culminaram na maior polarização política vista até então no Brasil. Outros fatores certamente contribuíram - contexto internacional, crescimento forte das correntes de direita radical em vários países, inclusive nos EUA, esvaziamento e fragilidade dos partidos no Brasil, recusa de segmentos políticos em aceitar os resultados da segunda eleição da Dilma, entre outros, também contribuíram-, mas não é o caso de analisar isso aqui. Apenas estou lembrando a polarização política, forte o suficiente para abalar até mesmo relações pessoais e familiares.

As Forças Armadas, principalmente pela inserção efetiva nas atividades de governo, tomou posição, fortaleceu o processo e permitiu que a politização entrasse de forma importante nos quartéis. E se fortaleceu como força política efetiva, passando a serem vistas como as guardiãs dos valores defendidos pelos radicais, contra a oposição política e contra, principalmente, o poder judiciário, em especial o STF, de onde ainda vinha alguma força que dificultava investidas anticonstitucionais durante o último governo. Significativamente, depois das eleições, os acampamentos se organizaram em frente aos quartéis, com clara conivência das respectivas forças militares. Em nenhum momento do governo Bolsonaro ouviu-se alguma voz de dentro das FA contra investidas inconstitucionais; nenhum deles se manifestou após as eleições para defender os resultados legítimos; nenhuma de suas vozes se levantou contra o a tentativa de golpe e o vandalismo do dia 8 de janeiro; na verdade, pelas informações mais recentes, até pelas manifestações do próprio Presidente Lula, segmentos das FA facilitaram a invasão dos poderes na Praça dos Três Poderes e podem mesmo ter participado do planejamento desses fatos. Ou seja, se há militares defensores dos poderes legalmente constituídos, eles estão calados.

Frente a isso, ficam perguntas: quais seriam esses militares “legalistas”? Que força têm eles dentro das FA? Que influência têm eles sobre as patentes subordinadas?

Considerando o papel que as FA têm tido na história brasileira, o papel que exerceram no governo Bolsonaro, a participação nos eventos do dia 8 e o comportamento “arisco”, para dizer o mínimo, como confiar? Em quem confiar?

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Pode-se argumentar que a importância das FA já não é a mesma de outros tempos, que há muitos fatores e condições no Brasil atual que podem servir de anteparo à democracia e de freio a intentos golpistas, mesmo de origem ou com apoio militar. É verdade. Mas as FA ainda são importantes atores e, agora, com segmentos associados aos ultraconservadores e mesmo aos golpistas. Para estes, elas servem de escudo e lhes dá o sentimento de ter “a força” a seu lado. O mesmo ainda não pode dizer o governo Lula.

É claro que têm de ser consideradas diferenças importantes na situação atual e em outros momentos de golpes no Brasil, em especial quando se teme por um novo golpe como o de 1964. São diferentes momentos históricos, diferentes composições de forças políticas e sociais, uma sociedade civil mais forte – mas também polarizada -, e um outro contexto internacional, com fortes movimentos de crescimento da ultradireita, em que o papel do Brasil vinha modificando-se radicalmente nas décadas pós redemocratização até o governo Bolsonaro. Quero desenvolver mais minhas colocações sobre essas diferenças, como sequência a este texto inicial.

No entanto, um elemento fundamental permanece como pano de fundo desses golpes e do apoio que recebem de segmentos da população:

∙ o argumento (arcaico) contra o “socialismo” e o “comunismo”, com concepções equivocadas sobre o que significam e apesar de esses sistemas terem sofrido fortes revezes no contexto internacional e, efetivamente, não se visualizar chance alguma de os implantar no Brasil; mas continuam sendo apresentados como “a ameaça” à sociedade brasileira ... irão confiscar seus bens, tomar seu dinheiro, proibir as religiões, coisas do gênero, sem qualquer base de sustentação. Incrivelmente, parece o mesmo filme anterior a 1964, sugerindo que as camadas cooptadas (agora em muito maior número) são igualmente desprovidas de qualquer capacidade de observação e análise dos processos políticos e sociais. Prevalecem os preconceitos, a desinformação, o “cabresto”;

∙ frente às supostas “ameaças”, grupos golpistas se colocam como “defensores da Pátria, da liberdade, da família, dos valores tradicionais”. Lembremos da “Marcha com Deus pela Família e pela Liberdade”, quando segmentos da sociedade civil - naquele momento, em geral da elite, que até doaram suas joias para a “causa” -, saíram às ruas para apoiar os militares golpistas.

Nesse processo, creio que há muitas diferenças fundamentais que precisam ser mais bem debulhadas, pois há muitas nuanças que tornam as situações mais complexas e difíceis de compreender. Menciono quatro delas que me parecem mais evidentes:

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∙ hoje vemos o apoio de numerosas e diversificadas camadas populares ao bolsonarismo, à direita radical e aos golpistas. Não se pode esquecer o vulto dos eleitores de Bolsonaro, ainda que uma parte tenha sido pelo antipetismo. Na ditadura militar esse apoio não se expressava tanto, exceto em partes da elite. A participação política da população era muito menor, nos períodos anteriores ainda predominava o voto de “cabresto”, ditado pelos grandes caciques políticos – que se aliaram aos militares, pelo menos para o golpe. No funcionalismo, nos trabalhadores, na população em geral, os fortes elementos de dominação foram a força e o medo. Hoje, os segmentos populares bolsonaristas, golpistas, veem os militares (FA e polícias) como seus aliados;

∙ uma segunda diferença importante é o apoio incondicional dado ao golpe de 1964 pelos caciques políticos da época, em especial dos governadores dos principais estados do país. Sem Magalhães Pinto (MG), Carlos Lacerda (GB) e Adhemar de Barros, a história teria sido outra, mesmo que caísse Jango;

∙ em terceiro lugar, está o governo estabelecido no momento do golpe ou tentativa de. Jango não tinha a força nem a legitimidade do governo Lula. Jango e Jânio eram de partidos acirradamente contrários; Jango tomou posse após a crise da renúncia de Jânio (que também não estava “agradando” aos interesses daqueles que o elegeram e por isso nem se moveram para o sustentar); havia naquele momento demandas de segmentos sociais que eram quase inéditas no país e soavam como ameaças aos interesses dominantes; enfim, Jango não tinha o governo em suas mãos e não tinha apoio de importantes segmentos sejam civis ou militares. Lula foi eleito, sua eleição e a garantia dos resultados teve o apoio de instituições hoje muito mais fortes que naquele outro momento – como a justiça eleitoral, o próprio STF e, mesmo no Legislativo, apesar das posições contrárias, não houve contestação das eleições. A legitimidade do governo eleito não foi questionada por segmentos importantes;

∙ Além disso, o contexto internacional era de Guerra Fria, Revolução Cubana, a China de Mao, etc., ameaças aos grandes interesses ocidentais. Nesse contexto, o golpe no Brasil – e em outros países – teve apoio incondicional, político e estratégico, dos EUA e o novo governo militar brasileiro foi rapidamente reconhecido internacionalmente. No caso atual, não apenas os EUA mas inúmeros outros importantes países se manifestaram em apoio a Lula, ao respeito às urnas e contra os atentados de janeiro ou um possível golpe.

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Esses são alguns fatores que fazem a situação atual muito diferenciada de 1964. Mas nem todo golpe tem a mesma natureza e as mesmas composições. Como vimos acima, houve tentativas de golpe se iniciaram ou foram fortemente apoiadas por forças civis internas, como as FA no papel de tentativa ou execução do golpe, considerando suas funções como força militar.

Assim, certamente as condições são outras, o atual governo está estabelecido, reagiu de forma efetiva aos atentados de dezembro e janeiro (muito embora, na minha opinião, tenha havido uma avaliação equivocada sobre a possível magnitude do ataque de 8 de janeiro). As ações que estão sendo praticadas –

identificação de responsáveis, prisão de alguns comandos, intervenção na segurança do DF, entre outras – têm mostrado que o governo está atento, atuante e, aparentemente, sem muitas oposições a essas medidas.

Mas, o próprio governo já disse claramente das suspeitas de envolvimento de segmentos militares; e a identificação de participantes mostra militares que lá estavam; o governo Lula, com toda razão, está tomando medidas para desmilitarizar a administração pública, o que deixará milhares de militares sem os rendimentos extras que estavam recebendo no governo Bolsonaro.

E, muito significativamente, nenhuma palavra se ouviu de representante algum das Forças Armadas (nem dos ministérios militares!!!). Nem de apoio ao governo Lula, nem de repúdio às tentativas de terrorismo – bombas, queima de carros em 12 de dezembro – ou ao terrorismo e tentativa de golpe de 8 de janeiro.

Há algum segmento das FA comprometidos com as garantias democráticas, com o governo de Lula, legitimamente eleito? Precisamos saber!

Isso é ainda mais importante quando consideramos que os apoiadores do Bolsonaro colocaram suas esperanças nas FA. Não à toa, os acampamentos foram armados em frente aos quartéis e por eles garantidos, até mesmo contra ordens judiciais de desmantelamento.

MCSPaula
Janeiro 2023

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