PAGINAS FRT

sábado, 20 de abril de 2024

CARTA ABERTA AO PRESIDENTE LULA * Wladimir T. B. Soares/RJ

CARTA ABERTA AO PRESIDENTE LULA
Wladimir T. B. Soares

Senhor Presidente,

Inicialmente, quero deixar claro que sou seu eleitor desde a primeira vez em que o senhor foi candidato à Presidência da República do Brasil. Logo, sinto-me a vontade para escrever esta carta.

Muitas coisas eu gostaria de abordar aqui, com muito mais profundidade, mas vou me prender às questões referentes ao SUS (Sistema Único de Saúde), ao direito de greve do servidor público e aos nossos hospitais públicos federais universitários (HUs) - há treze anos vindo sendo descaracterizados e transformados em filiais da EBSERH (Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares), sem nenhum compromisso com a educação.

Antes de começar a desenvolver esses temas, quero alertar que o senhor tem ouvido as pessoas erradas sobre esses assuntos, tem sido mal assessorado e tem sido muito mal orientado sobre as causas de tantos problemas existentes, já de longa data, na saúde pública brasileira e sobre as correções de rumo e as soluções corretas a serem adotadas nesse setor. Do mesmo modo, com relação aos hospitais públicos federais universitários, há muitos interesses não republicanos envolvidos, com a finalidade da sua destruição – que é o que está acontecendo.

O SUS é a maior conquista social do povo brasileiro na Constituição Federal de 1988; e é, também, o maior programa de inclusão social do planeta Terra, já que atende a todos só por serem pessoas humanas, não importando a sua nacionalidade e nem a sua condição socioeconômica. Logo, o SUS é uma das dimensões da nossa democracia, dada a sua enorme capilaridade, universalidade, igualdade, integralidade e gratuidade, tudo isso sob uma perspectiva de controle social, ou seja, da participação popular na definição das políticas públicas a serem implementadas em todo o sistema.

Todavia, desde a sua criação, o SUS vem sofrendo ataques contínuos ao longo de toda a sua história, tanto por forças internas quanto por forças externas (em particular, do Banco Mundial), sempre com vistas à sua privatização, seja privatização clássica, seja privatização não clássica, como quando se transfere a gestão pública do SUS para uma gestão privada realizada através de Organizações Sociais (OS), Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), Organizações da Sociedade Civil (OSC) e Organizações Não Governamentais (ONG) – todas elas com seus interesses privados -;

ou quando se realiza aquilo que conhecemos como “publicização”, ou seja, a transformação de entidades administrativas de personalidade jurídica administrativa de direito público em entidades administrativas com personalidade jurídica administrativa de direito privado; ou mesmo quando são criadas novas entidades administrativas com personalidade jurídica de direito privado para atuarem em áreas de serviços públicos sociais, tais como saúde e educação, tendo como exemplos as Fundações Municipais ou Estaduais de Direito Privado e a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) – uma verdadeira aberração administrativa/constitucional reconhecida pelo STF
(Supremo Tribunal Federal) como fruto de uma lei (Lei n. 12.550/2011) constitucional. Francamente... Aqui não houve uma decisão jurídica constitucionalmente fundamentada, mas sim uma decisão política muito afastada do Texto Constitucional e de tudo aquilo que fundamentou a criação do SUS e dos hospitais públicos federais universitários.

Embora as leis que tratam das entidades do chamado “terceiro setor” (OS, OSCIP, OSC, ONG, etc.) afirmem que elas não têm finalidade econômica lucrativa, muitos dos seus donos (com certeza, a maioria) visa, sim, obter lucro econômico e estão enriquecendo com a transferência milionária de dinheiro público para as suas mãos, sem que haja uma firme e honesta fiscalização por parte dos órgãos públicos responsáveis por isso, ferindo, desse modo, o Princípio da Responsabilidade Fiscal.

Então, quando chega ao meu conhecimento de que o atual governo federal pretende transferir a gestão dos hospitais públicos federais da cidade do Rio de Janeiro para entidades do terceiro setor e EBSERH, ou fazer parceria público-privada para a gestão do INCA (Instituto Nacional do Câncer), ou então promover a municipalização ou estadualização desses hospitais, fica absolutamente claro para mim que este governo está totalmente perdido e equivocado no diagnóstico e na solução dos problemas há muito tempo presentes nesses hospitais. Isso só vai agravar ainda mais o caos estabelecido nesses hospitais – caos estabelecidos ao longo de todos os governos até aqui, que resolveram ouvir as orientações do Banco Mundial e fecharam os ouvidos para os sindicatos de trabalhadores desses hospitais. A solução está no SUS, público e sob gestão estatal, e jamais sob a gestão de entidades com personalidade jurídica de direito privado, mesmo que estatais. São as entidades com personalidade jurídica de direito público (autarquias e fundações estatais de direito público), além da Administração Pública Direta, que devem resolver os problemas vivenciados no SUS, orientados pelos Princípios Constitucionais norteadores do SUS, com a participação popular e dos servidores públicos desses hospitais. O SUS, assim como esses hospitais públicos federais, não pertence a nenhum governo, mas sim ao povo brasileiro, sendo os servidores públicos estatutários (Regime Jurídico Único – RJU) peças fundamentais em toda a sua engrenagem. Sem eles não há solução possível.

O Banco Mundial, com sua ideologia neoliberal, é mestre em criar ressignificados para as coisas. Assim, dizer que essas entidades do terceiro setor são “entidades públicas não estatais” é de um cinismo irritante porque, na verdade, todas elas são “entidades genuinamente privadas”, que jamais deveriam fazer gestão privada dos serviços públicos sociais – entre eles os de saúde e educação.

Interesse público não se confunde com interesse privado. Simples assim.

Além do mais, fere o Princípio da Economicidade transferir dinheiro público para essas entidades privadas, já que o gasto público é muito maior quando isso acontece. Ou seja, para afastar-se da sua responsabilidade sanitária com relação ao SUS, promove-se a terceirização da gestão e da prestação dos serviços públicos de saúde no âmbito do SUS, por meio da remuneração milionária para o setor privado, livrando-se, aparentemente, o Poder Público dessa sua obrigação constitucional, o que, ao longo dos anos vem tornando cada vez mais precário o funcionamento do SUS. A gestão privada do SUS é uma das causas dos seus problemas, não podendo ser sua solução. Isso fere também o Princípio

Constitucional do Concurso Público, já que o pessoal contratado por essas entidades do terceiro setor não gozam da estabilidade necessária à eficiência da Administração Pública.

As chamadas “PPP” (Parcerias Público-Privadas) estabelecidas no SUS são, muitas vezes, verdadeiras “Promiscuidades Público-Privadas”, que só trazem prejuízos para a população.

Portanto, as ações e serviços públicos desenvolvidas no SUS, quando realizadas pelo Poder Público, devem estar submetidas, obrigatoriamente, ao regime jurídico administrativo constitucional de direito público, sob uma gestão pública estatal da Administração Pública Direta (Ministério da Saúde, Secretarias Estaduais ou Municipais de Saúde) ou pela Administração Pública Indireta, por meio de suas Autarquias ou Fundações Públicas de Direito Público.

É também uma proposta do Banco Mundial a substituição do SUS pelo “CUS” (Cobertura Universal de Saúde), cujo nome dá a impressão de que isso seria uma coisa muito boa para o país. Falsa impressão. O “CUS” não é sistema universal de saúde, sendo, na verdade, uma forma sutil de privatização do SUS, já que essa “cobertura universal” existiria para aquelas pessoas que pudessem pagar por ela; ou seja, a mercantilização da saúde – saúde como mercadoria, e não como um direito; e não, de fato, universal, integral, igual, equitativa e gratuita.

A EBSERH é uma empresa pública com personalidade jurídica de direito privado, com inscrição na Junta Comercial, que visa à obtenção de lucro através da prestação de serviços hospitalares, conforme previsto no artigo 1º da lei que autorizou a sua criação (“Fica o Poder Executivo autorizado a criar empresa pública unipessoal, na forma definida no inciso II do artigo 5º do Decreto-Lei n. 200, de 25 de fevereiro de 1967”). Por este Decreto, Empresa Pública é entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, com patrimônio próprio e capital exclusivo da União, criado por lei para exploração de atividade econômica que o Governo seja levado a exercer por força de contingencia ou de conveniência administrativa podendo revestir-se de qualquer das formas admitidas em direito. Portanto, a EBSERH foi criada com a intenção de tratar a saúde não como um direito, mas, sim, como uma mercadoria, em que a prestação de serviços hospitalares seja realizada como atividade a ser economicamente explorada. Ela não foi criada apenas com o intuito de fazer a gestão dos hospitais públicos federais universitários, mas, sim, para, de forma definitiva, possuir todos esses hospitais, substituindo a Universidade na formação acadêmica dos profissionais das áreas da saúde, mudando o perfil acadêmico desses hospitais para um perfil empresarial, contratando empregados públicos (celetistas, sem estabilidade) para ela mesma, eliminando aos poucos, mas continuamente, a presença de servidores públicos (cedidos das Universidades) nesses hospitais, pondo fim, assim, à carreira pública estatutária nesses hospitais. A autonomia universitária sofre uma ruptura, passando a EBSERH a ter poder e autonomia sobre todos os seus atos. A EBSERH não se submete ao controle social do SUS. O contrato celebrado entre a Universidade e a EBSERH para cessão do hospital universitário é um contrato de adesão elaborado pela EBSERH. Trata-se de uma empresa estatal dependente 100% de verbas da União. Uma empresa que não traz nenhum dinheiro novo para esses hospitais e que passa a fazer a gestão também das verbas do REHUF (Programa Nacional de Reestruturação dos Hospitais Universitários Federais),
distribuindo essas verbas conforme a sua vontade unilateral. Além disso, a EBSERH passou a realizar os concursos para Residência Médica, afastando a Universidade desse fim. Os hospitais universitários, sob sua posse e gestão, passam a ser filiais da EBSERH, sem, verdadeiramente, nenhum compromisso com a educação (ensino-aprendizado) dos nossos estudantes, estando os projetos de pesquisa subordinados à aprovação do gerente de pesquisa da EBSERH. Como empresa, a EBSERH fecha serviços (inclusive serviço de emergência), reduz número de leitos, impõe restrições para o acesso da população a esses hospitais, retira a autonomia dos profissionais da saúde e professores que atuam nesses hospitais, restringe o acesso de estudantes a determinadas áreas do hospital, pressiona altas hospitalares, limita a realização de exames complementares dos pacientes, promove a prática do assédio moral como política institucional da empresa, tudo isso – e muito mais – levando a uma enorme precarização do ensino acadêmico e enorme prejuízo à população. E tudo isso com a omissão conivente de Reitores e Diretores das Faculdades de Medicina, e de outras Faculdades também. O que a EBSERH pretende, em curto prazo, é que haja a substituição dos Professores Universitários por Preceptores da EBSERH na formação acadêmica de médicos e enfermeiros nesses hospitais. O Senhor consegue imaginar o desastre que isso vai causar? Na verdade, esse desastre, essa precarização da formação médica nesses hospitais, já vem ocorrendo desde a criação dessa empresa (uma empresa que nunca deveria ter sido criada). Se o senhor quiser conhecer, de verdade, o que é a EBSERH, pare de dar ouvidos àqueles que propuseram a sua criação ou que ocupam cargos na empresa. Disponha-se a ouvir, a escutar os servidores públicos que ainda restam nesses hospitais e os estudantes. Não ouça os Reitores ou o Presidente da EBSERH. Escute aqueles que vivenciam a realidade dessa empresa nesses hospitais e o senhor ficará sabendo o que mudou a partir da criação dessa empresa – um verdadeiro câncer que precisa ser extirpado desses hospitais, voltando todos eles à gestão plena realizada pelas suas respectivas Universidades Públicas Federais, resgatando a autonomia universitária e recompondo os recursos humanos através de concurso público para servidores públicos estatutários em todos os HUs (Hospitais Universitários). A criação estúpida dessa empresa também fere o Princípio da Economicidade, já que a EBSERH é, hoje, a empresa estatal dependente que mais demanda recursos dos cofres públicos para continuar existindo. Assim como não se conhece a escravidão ouvindo o que dizem os donos dos escravos e nem se conhece o que foi o nazismo escutando o que dizem os nazistas, não é possível conhecer a EBSERH escutando aqueles que são remunerados por ela ou que a idealizaram. É preciso ouvir os escravos, aqueles que sofreram a brutalidade do nazismo e aqueles que sofrem as ordens da EBSERH.

Há uma deficiência gritante no número de leitos hospitalares no SUS, o que faz dos sistemas de regulação de leitos um engodo, já que não há número de leitos suficientes para serem regulados. Faltam leitos de enfermarias, unidades de terapia intensiva, unidades coronarianas etc. Menos de 20% dos 5.570 municípios brasileiros dispõem de leitos de UTI. Muitos hospitais públicos federais mantêm leitos hospitalares inativos por falta de pessoal; muitos por falta de equipamentos. Enquanto a população brasileira cresce dia após dia, isto não é acompanhado de um aumento na oferta de leitos hospitalares no SUS. Praticamente, toda a rede hospitalar do SUS necessita de atualização do seu “parque” tecnológico; muitos deles precisam de uma reestruturação arquitetônica; outros tantos precisam ser construídos. Não é possível que hospitais de nível terciário e hospitais universitários não tenham serviço de emergência aberto e funcionando 24 horas por dia,

todos os dias da semana, com equipes multidisciplinares completas de plantão. Emergência referenciada não pode ser emergência fechada. Se ela é considerada “referenciada”, ela é emergência aberta a todos os casos de emergência, inclusive para os casos de alta complexidade. Não é possível admitir a continuação de emergências de hospitais públicos com suas portas, na prática, fechadas para o público. Isso caracteriza, no meu entendimento, um crime de Estado contra toda a sociedade. Os hospitais militares – todos eles – são hospitais públicos e precisam estar inseridos na rede hospitalar do SUS, determinando-se uma percentagem mínima de atendimentos (consultas ambulatoriais, internações etc.) da população civil nesses hospitais, mensalmente, não podendo esses hospitais continuarem a serem ilhas para privilegiados neste nosso país. Esse tipo de discriminação na rede pública hospitalar brasileira precisa acabar. O SUS é para todos e todos têm direito ao SUS; e todos os hospitais públicos brasileiros, civis e militares, têm que fazer parte do SUS. Precisamos amadurecer e avançarmos na ideia da ampliação territorial dos chamados “Campus Avançados Universitários”, onde hospitais públicos universitários de pequeno porte e bem estruturados sejam construídos e fiquem sob a gestão de suas respectivas universidades públicas, com o fim de integração, ensino, pesquisa e extensão, de modo a possibilitar que os estudantes das áreas da saúde conheçam de perto a realidade social brasileira e aprendam sobre as doenças endêmicas locais e regionais, aumentando, assim, o seu conhecimento científico e contribuindo para a formação de “cidadãos” médicos, “cidadãos” enfermeiros etc. A Universidade Federal Fluminense (UFF), por exemplo, possui o Campus Avançado José Veríssimo, que fica no município de Oriximiná, no Estado do Pará, hoje sem uma política pública universitária para melhor aproveitá-lo. Portanto, precisamos construir essa política numa dimensão nacional para esse fim.

Todos os hospitais públicos da rede do SUS precisam ser modernizados. E nenhum deles deve ter a sua gestão terceirizada ou estar sob o regime jurídico administrativo de direito privado. Esse deve ser o primeiro passo para pôr fim a um processo longo de destruição do SUS.

O Brasil não é um país pobre; ele faz parte do chamado G-20. Portanto, ele está entre as economias mais fortes do mundo. Todavia, ele é um país extremamente desigual, onde a enorme desigualdade social salta aos nossos olhos. Então, não dá para aceitar o discurso de que o governo não tem dinheiro para investir no fortalecimento do SUS e na valorização dos seus servidores públicos; e o mesmo vale para o setor da educação pública superior. Quando olhamos o orçamento público federal executado (pago) em 2023 e tomamos conhecimento de que 43,23% (ou seja, R$ 1,89 trilhões) foram gastos para o pagamento de juros e amortizações da dívida, temos a certeza de que essa dívida precisa urgentemente ser auditada, porque não é possível que continuarmos a gastar quase 50% de todo o nosso orçamento com a remuneração do sistema financeiro. É por essa razão que deve atuar a “Auditoria Cidadã da Dívida” – uma associação, sem fins lucrativos, que tem seus objetivos elencados no seu Estatuto Social, entre os quais: realizar, de forma cidadã, auditoria da dívida pública brasileira, interna e externa, federal, estaduais e municipais; exigir a devida transparência no processo de endividamento brasileiro; exigir a devida transparência do orçamento fiscal.

Precisamos acelerar a construção do Complexo Econômico Industrial da Saúde, não somente por uma questão de saúde, mas também por uma questão econômica que

trará muitos recursos para o país por meio da exportação de produtos médicos fabricados aqui. Por isso, é preciso garantir investimento pesado em pesquisa. Por isso, é preciso priorizar a Educação.

O SUS tem natureza jurídica de direito fundamental de natureza social e cláusula pétrea constitucional, devendo estar submetido ao regime jurídico administrativo constitucional de direito público, cuja gestão deve ser, obrigatoriamente, pública estatal e de responsabilidade da autoridade pública sanitária competente, seja ela no âmbito municipal, estadual, distrital e/ou federal, com recursos humanos oriundos de concurso público, assegurando, desse modo, um sistema público de saúde composto por servidores públicos estatutários (com estabilidade constitucionalmente garantida) dentro de uma carreira pública de Estado (e não de governo, e não temporários, e não celetistas) específica e única do SUS.

Desse modo, há de se abrir inscrição para Concurso Público do SUS, de âmbito nacional, e não para Secretarias Municipais e Estaduais de Saúde, e não para o Ministério da Saúde. O trabalhador público na área da saúde pública brasileira deve ser um servidor público do SUS, compondo uma carreira pública e igualmente única do SUS, em nível nacional, não havendo diferença salarial entre os Municípios e os Estados da Federação, nem com relação a área Federal, haja visto que todos estão trabalhando no SUS. Assim, em todas as regiões do país, o salário pago aos servidores públicos do SUS deve ser o mesmo, distinguindo-se apenas com relação a especificidade do cargo que ocupa. Ou seja, o médico do SUS deve receber o mesmo salário, independentemente do lugar geográfico onde ele esteja exercendo o seu trabalho. E o mesmo critério deve ser com relação a todos os outros profissionais do SUS, tais como enfermeiros, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, técnicos de enfermagem, assistentes sociais, nutricionistas, odontólogos etc. Todos considerados servidores públicos do SUS. Este é o jeito correto de corrigir a crônica falta de recursos humanos no SUS.

Essa distinção de salários, dependendo do cargo que ocupa, encontra solução na própria Constituição Federal de 1988, no seu artigo 39, § 1º, incisos I, II e III, nos seguintes termos: “A fixação dos padrões de vencimento e dos demais componentes do sistema remuneratório observará: a natureza, o grau de responsabilidade e a complexidade dos cargos componentes de cada carreira; os requisitos para a investidura; e as peculiaridades dos cargos.” Quando olhamos para esse mandamento constitucional, fica transparente a injustiça remuneratória que, historicamente, sofrem todos os profissionais da saúde e da educação neste nosso país, pois eles são aqueles servidores públicos que deveriam receber os maiores salários de toda a Administração Pública, sendo que o teto remuneratório constitucional deveria estar nas Universidades Públicas Federais, e não no Supremo Tribunal Federal, por razões óbvias.

Mais do que isso, há de se criar uma carreira pública de Estado do SUS que leve em conta o Princípio Constitucional do Valor Social do Trabalho, que implica, entre outras coisas, no reconhecimento do valor social do salário e do valor social do próprio servidor público, que é aquele trabalhador público que faz a Administração Pública funcionar e que presta os serviços públicos diretamente à população, muitos deles serviços públicos que realizam direitos humanos fundamentais, como saúde e educação.

Importante salientar, ainda, que a investidura no cargo pelo servidor público se dá por meio de aprovação em concurso público – trata-se da meritocracia do concurso público, o que assegura que, em regra, o servidor público entra na Administração Pública sempre por mérito. Indicados, de livre nomeação, sem concurso público, somente para os cargos comissionados, que nem deveriam existir, já que comumente são ocupados por pessoas estranhas à Administração Pública e cujo compromisso é mais com quem o indicou do que com o interesse público.

É também uma das dimensões da democracia a estabilidade do servidor público, que se caracteriza pela impossibilidade do servidor público ser exonerado sem justa causa, ou seja, por motivos pessoais, políticos, religiosos etc. Assim, a estabilidade assegura que ele só possa ser exonerado por justa causa demonstrada e provada em processo administrativo disciplinar, respeitando-se o devido processo legal, com possibilidade, ainda, dessa eventual exoneração ser levada à apreciação do Poder Judiciário para decisão definitiva. Além disso, a estabilidade garante a voz do servidor público, que poderá recusar-se a cumprir ordens abusivas (ilegais) e denunciar desvios cometidos pela Administração Pública. É essa estabilidade que protege o servidor público contra atos de perseguição pessoal por parte do Poder Público. Nesse sentido, a estabilidade do servidor público atende aos Princípios Constitucionais Administrativos da Impessoalidade, Moralidade e Eficiência, sendo o servidor público um servidor do Estado, e não do governo. É essa estabilidade que possibilita o servidor público do SUS ser o primeiro advogado dos pacientes diante da má prestação de assistência em saúde nos casos de precarização dos serviços e omissão do Estado. É essa estabilidade que garante a defesa da sociedade pelo servidor público estatutário. Na verdade, essa estabilidade representa um grande avanço conquistado por toda a sociedade na nossa Constituição Federal de 1988.

Importante esclarecer que a Administração Pública brasileira não apresenta excesso de servidores públicos, ou seja, não se revela com um “inchaço” da máquina administrativa, como a imprensa e outros órgãos procuram anunciar. Ao contrário, é flagrante o déficit de pessoal em todos os setores da Administração Pública, particularmente nas áreas da saúde e educação. Já faz muitos anos que o Brasil vive uma “indústria dos concursos para contratação de trabalhadores temporários”, que não emprega ninguém e mantém as condições de precariedade em todos os setores da Administração Pública, constituindo mais um obstáculo para a eficiência dos serviços públicos, o que afeta a sua credibilidade e confiança. Trata-se de uma política pública neoliberal que ajuda a destruir o Estado brasileiro. Enquanto a média de funcionários públicos com relação ao total de trabalhadores de um país é de 23,48% entre os países membros da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), o Brasil tem apenas 12,45% de servidores públicos com relação ao total de trabalhadores aqui. Na Dinamarca, por exemplo, 30,22% de todos os seus trabalhadores são servidores públicos. Na verdade, os países com os maiores índices de desenvolvimento humano (IDH) são, em geral, aqueles que apresentam o maior número de funcionários públicos a serviço da sociedade. E isso é assim porque são os servidores públicos aqueles trabalhadores que realizam os direitos humanos no front dos serviços públicos, são eles que garantem eficiência na prestação dos serviços públicos, são eles que que promovem o Princípio da Confiança na Administração Pública. E é por isso também que eles

precisam ser valorizados e prestigiados, tanto pela Administração Pública quanto por toda a sociedade.

O SUS é um elemento estruturante do Estado brasileiro, o que faz com que o direito à saúde, no Brasil, seja uma das dimensões da democracia e um direito público, subjetivo, de cidadania, que precisa ser defendido e não destruído. Para o fortalecimento dessa sua defesa, o SUS deveria ser disciplina obrigatória no currículo escolar, pois só conhecendo a sua história e o seu conteúdo o povo agiria como o seu guardião.

Senhor Presidente, procure fazer estas perguntas a si mesmo: Quanto vale a minha vida? E quanto vale o trabalho daqueles profissionais que se dedicam a cuidar dela?

Os profissionais do SUS são trabalhadores qualificados, pessoas que, por vocação, resolveram fazer da sua própria vida uma vida em razão do outro, uma vida dedicada a cuidar do outro, uma vida arriscada em meio a epidemias, pandemias, desastres naturais, zonas de conflitos etc. Uma vida de muito sofrimento, de muita angústia, de muito desespero, de muita responsabilidade, de extrema complexidade, de muito estudo e de muito trabalho – um trabalho pessimamente remunerado. São os profissionais da saúde e da educação, neste nosso país, aqueles que recebem os salários mais baixos pagos pela Administração Pública. Nenhum país consegue se desenvolver plenamente sem que haja investimento pesado e contínuo nessas áreas. Trata-se de vontade política na hora de elaborar o orçamento público da nação, momento em que são definidas prioridades.

Sendo assim, valorizar o servidor público do SUS é ter compromisso com a vida humana, com a dignidade da pessoa humana do trabalhador público, com a eficiência e qualidade dos serviços públicos prestados e com o bem-estar de toda a sociedade.

É preciso romper com a lógica do subfinanciamento do SUS e investir pesado na saúde pública brasileira, de modo a garantir segurança, qualidade, integralidade e confiabilidade na assistência em saúde prestada à toda a população brasileira.

Na verdade, o Brasil deveria liderar uma luta em defesa da criação de um SUS global, com fundamento na dignidade da pessoa humana, sob a perspectiva de uma cidadania planetária.

Desde a Constituição de 1988 que a greve passou a ser um direito fundamental de todo trabalhador, seja ele servidor público ou não.

O senhor nasceu politicamente a partir da sua ação no sindicato dos metalúrgicos do ABCD paulista, sempre reivindicando melhores salários e condições de trabalho para o trabalhador. Então, como pode, hoje, o seu governo – o governo do PT (Partido dos Trabalhadores) - propor reajuste zero para a maioria dos servidores públicos do Poder Executivo, tendo concedido reajuste para aquelas carreiras que fizeram “arminhas” contra o senhor? O Senhor jamais aceitou reajuste zero para os trabalhadores do sindicato que o senhor presidia. Quem enfrentou de frente, trabalhando muitas vezes sem equipamento de proteção individual adequado, a epidemia pelo vírus da Covid-19 foram os servidores públicos da saúde e os da educação, sendo que o Brasil foi o país onde mais morreu servidores públicos da saúde vítimas dessa pandemia em todo o mundo. O senhor sabe quanto recebe de salário mensal um médico do Ministério da Saúde, um médico do INCA? O Senhor sabe quanto o Ministério da saúde paga de salário mensal a todos os

seus servidores públicos? O senhor sabe qual o vencimento básico de um Professor Universitário? Vai se surpreender ao ficar sabendo que todos eles (tanto os do Ministério da Saúde quanto os do Ministério da Educação) têm como vencimento básico um valor inferior ao piso nacional do ensino médio. Tem Professor Universitário de Medicina recebendo de salário um valor menor do que o valor pago pelo governo como bolsa para os médicos residentes. Vou dar um exemplo para o Senhor: o vencimento básico atual de um Professor de Medicina de uma Universidade Pública Federal, com uma carga horária de 20 horas semanais, há 34 anos exercendo o magistério superior, com três especializações, mestrado, doutorado e 25 livros publicados é de R$ 2.770,25 (dois mil setecentos e setenta reais e vinte e cinco centavos). O vencimento líquido deste mesmo Professor, já com o acréscimo de 75% de adicional de doutorado, é de R$ 3.340,98 (três mil trezentos e quarenta reais e noventa e oito centavos). É justo isso? Vou te dar outro exemplo: um Professor Universitário de Engenharia recebe um salário mais baixo do que o salário recebido pelo engenheiro que ele forma e que está trabalhando nessa mesma Universidade Pública Federal. É justo isso? E isso acontece com relação a todas as especialidades. Os seus Ministros já te alertaram sobre essas distorções salariais dentro da Administração Pública? Procure melhor informar-se sobre essas coisas, senhor Presidente, porque os seus Ministros parecem não se importar com isso. Na verdade, todo o Ministério da Saúde precisa de uma reestruturação urgente da sua carreira, de modo a realizar o pagamento de salários dignos aos seus servidores públicos. E o mesmo precisa acontecer com relação à carreira dos técnicos Administrativos em Educação e à carreira do Magistério Superior nas Universidades Públicas Federais. Não é possível manter os olhos fechados para essas distorções. Sem o professor, nenhuma profissão oficialmente regulamentada existiria. Não existiriam engenheiros, médicos, enfermeiros, advogados, juízes, promotores, sociólogos, historiadores, professores etc.

Quando servidores públicos da Saúde e Educação deflagram uma greve, eles estarão sempre em estado de vulnerabilidade frente à Administração Pública. Isso porque a greve nesses setores não causa nenhum prejuízo para os cofres públicos. Ao contrário, o governo lucra economicamente com isso. Portanto, jamais haverá paridade de armas numa greve com esses atores. Por isso, é inadmissível o corte de salários dos servidores públicos em greve porque isso caracterizaria um abuso de poder por parte da Administração Pública, já que salário é verba alimentar que procura garantir o sustento e a vida dos servidores públicos e de seus familiares, embora os Ministros do STF – aqueles servidores públicos que estão lá por indicação política e não pela meritocracia do concurso público, e que nunca têm os seus salários congelados – apontam para o desconto no salário dos servidores públicos grevistas. Uma vergonha esse posicionamento. Eles não aceitariam trabalhar recebendo de salário que os servidores públicos federais da Educação recebem hoje. Tem muita gente hipócrita por aí. Tem muita gente má. Assim, é urgente que o governo atual apresente um projeto de lei regulamentando o direito de greve dos servidores públicos – um direito humano fundamental de natureza social –, sem que a norma legal apresentada possa, na prática, inibir o direito constitucional à greve. Nenhum servidor público ou trabalhador do setor privado faz greve porque quer; faz greve porque precisa, porque está em estado de necessidade. No caso da greve dos servidores públicos, importante salientar que eles estão sempre lutando não somente por melhores salários, isonomia de direitos sociais trabalhistas e reestruturação da carreira, mas também, sempre, por mais verbas para a Educação e Saúde; ou seja, estão sempre lutando

em favor da sociedade como um todo. Nenhuma greve do servidor público é contra a sociedade; ela é sempre contra uma Administração Pública negligente com o servidor. O bem-estar da sociedade é missão do servidor público. Sempre. Mas para que esse bem estar possa acontecer de fato, às vezes, é preciso fazer greve. E a sociedade precisa ter esse entendimento, de modo a sempre apoiá-la.

Por que não cumprir o mandamento constitucional disposto no artigo 37, inciso X, da nossa atual Constituição Federal (“A remuneração dos servidores públicos e o subsídio de que trata o § 4º do artigo 39 somente poderão ser fixados ou alterados por lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso, assegurada revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices”)? Por que até hoje o seu governo não apresentou projeto de lei definindo a data-base para o reajuste anual dos servidores públicos federais? Abrir mesa de negociação com servidores públicos e apresentar como contraproposta às reivindicações dos servidores públicos em greve um reajuste zero para este ano é, no mínimo, um desrespeito à toda a classe de servidores públicos da saúde e educação. Ora, os servidores públicos federais do Poder Judiciário e do Poder Legislativo tiveram aumento salarial este ano com um índice acima de 6%, ou seja, acima do índice oficial de inflação; justamente aqueles servidores públicos que recebem os maiores salários pagos pela Administração Pública. Acha justo isso?

O PT parece estar caminhando para ser um partido político de centro-direita, abraçando os fundamentos da ideologia neoliberal, alimentando privilégios para alguns setores da Administração Pública e retirando direitos sociais da maioria.

Acontece que a Constituição Cidadã de 1988 afirma o Brasil (a República Federativa do Brasil) como um Estado Democrático e Social de Direito e de Direitos, e não como um Estado Neoliberal sem Direitos, como muitos políticos e alguns membros do Judiciário (inclusive do STF) querem impor. A Constituição Cidadã de 1988 traz no seu Preâmbulo o nosso projeto de nação: a construção de um Estado de Bem-estar Social, e não a construção de um Estado de Mal-estar Social, como querem os neoliberais de direita e de extrema direita aqui.

Então, senhor Presidente, já passou da hora do seu governo iniciar um desmonte das políticas públicas neoliberais que vêm sendo implementadas ao longo de muitos anos tanto no SUS quanto na Educação, começando uma era de políticas públicas sociais, retirando dos serviços públicos sociais as mãos perversas do setor privado e colocando de novo as mãos do Estado (Poder Público) na gestão da saúde pública e educação pública no nosso país. Já passou da hora de reconhecer os erros cometidos no passado e promover uma mudança de rumo, extinguindo a EBSERH e resgatando os nossos hospitais públicos federais universitários de volta para a gestão pública estatal das suas respectivas Universidades Públicas Federais. Já passou da hora de assumir a responsabilidade pública estatal com esses setores (Saúde e Educação) e com a dignidade dos servidores públicos federais civis estatutários do Poder Executivo da União.

Não há solução possível para o SUS, e para os nossos Hospitais Públicos Federais Universitários e não Universitários, fora do regime jurídico administrativo constitucional de direito público e nem fora do Concurso Público para servidores públicos estáveis para essas áreas. Servidores públicos da saúde e educação devem integrar, obrigatoriamente, uma carreira pública de Estado porque sem educação e sem saúde o retrocesso

civilizatório, a injustiça social, o aumento da desigualdade social, o aumento da pobreza e o atraso tecnológico estarão garantidos.

Portanto, Senhor Presidente, tenha a humildade para escutar a voz dos servidores públicos da Educação e da Saúde, e tenha a coragem e determinação para mudar e transformar o nosso SUS e as nossas Universidades Públicas Federais (e os nossos Institutos de Pesquisa) em um modelo a ser admirado e respeitado por todos, no mundo todo, sob uma gestão pública genuinamente estatal e com uma remuneração que dignifique todos os seus servidores públicos estáveis.

Então, Senhor Presidente, venha conversar com a gente. Venha conversar com os servidores públicos federais do Ministério da Saúde, com os servidores públicos federais que hoje trabalham nas filiais da EBSERH (ou seja, nos nossos antigos hospitais públicos federais universitários), com os Professores Universitários e com os estudantes que hoje vivenciam a realidade nesses hospitais empresariais – hospitais estes que hoje negam aos estudantes o direito de aprender. Que tal participar de um evento organizado em uma das nossas Universidades Públicas Federais? Quem sabe na UNB (Universidade Nacional de Brasília)? Acho que todos nós poderíamos aprender muito com isso.

Sinceramente, espero que esta Carta chegue às suas mãos e que o Senhor a leia com muito carinho.

Saudações de esquerda!
Atenciosamente,

Wladimir Tadeu Baptista Soares
Advogado
Médico
Professor Universitário (UFF)
Servidor Público Federal
wladuff.huap@gmail.com
20/04/2024

Nenhum comentário:

Postar um comentário

O capitalismo está podre. Todos sabemos disso. Mas ele não cai sozinho