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sexta-feira, 21 de outubro de 2022

AOS INDECISOS OMISSOS INDIFERENTES * LEO MORAES - WEB

 AOS INDECISOS OMISSOS INDIFERENTES

-FOTO: SEBASTIÃO SALGADO-

Tem um poema maravilhoso de Baudelaire chamado “Os Olhos dos Pobres”. 

Nele o poeta descreve um dia passado com uma mulher maravilhosa, com um nível de afinidade e cumplicidade tal que fazia com que ele, cético, chegasse a acreditar na possibilidade de ter encontrado sua alma gêmea. 


Chega a noite, e a moça sugere que eles se sentem em um café num dos recém inaugurados bulevares de Paris (o poema data da época do Plano Haussmann, reforma que deu a Paris a forma que tem hoje).


O local resplandecia em seu charme sofisticado e semi-acabado. O poeta descreve o entulho ainda na rua, o cheiro de tinta fresca, os frequentadores chiques com sua criadagem, a exuberância gastronômica.


Eis que chega um homem com duas crianças, uma ainda de colo. Sujos e maltrapilhos, olhando contemplativamente para o maravilhoso café. E Baudelaire lê, pelos olhares, a visão de cada um deles em suas idades.


Ele se sente enternecido pelos olhares, e ao mesmo tempo um pouco envergonhado da fartura de sua mesa, e busca os belos olhos de sua amada, e acredita ler neles o mesmo sentimento que o inundava.


Ela então diz “Essa gente é insuportável, com seus olhos abertos como portas de cocheira! Não poderia pedir ao maître para os tirar daqui?”.


E, como um frágil cristal, a imagem que ele tinha dela se estilhaça, e o possível amor se torna desprezo.


Peço perdão a Baudelaire por resumir nas minhas palavras o que ele próprio descreve tão melhor em sua obra. Mas eu acho o sentimento expresso ali muito adequado ao momento atual, e não sei quantos de vocês terão a paciência de buscar o original (o que recomendo!).


Muitas coisas podem ser tiradas da cena descrita no poema. A injustiça da desigualdade, o reconhecimento de uma posição de privilégio, a importância da empatia. Mas pra mim a maior lição ali contida é:

existem defeitos que são imperdoáveis.


Em várias ocasiões em que fui conversar com alguma pessoa próxima que vota nesse cara, as pessoas tentam levar a discussão para o lado de corrupção, ou de economia, ou da importância de tirar o PT, ou sei lá.


O problema é que pra mim a opção passa por um lugar muito mais profundo, de humanidade, e moral básica. É simples: eu não voto em quem idolatra torturador. 


Eu não voto em quem fala que o erro da ditadura foi ter matado pouco. Eu não voto em quem diz que preferia ver o filho morto do que sendo gay. 


Eu não voto em quem diz abertamente que é contra a democracia. E mais uma lista de aberrações que esse cara disse, que são tantas que não dá nem pra listar.


Perto disso tudo, discussões sobre estado mínimo, direita e esquerda, reforma da previdência, educação, segurança, ou outras pautas, que tanto precisamos discutir como país, ficam insignificantes.


É como se na eleição do condomínio um dos candidatos a síndico te desse um soco na cara, um chute no saco, matasse seu cachorro, e depois viesse querer discutir de que cor tem que pintar o portão, e pedir seu voto. Não dá.


O que ele fez foi roubar de nós a oportunidade de discutir que rumo queremos para o país. Não dá pra debater propostas, com um projeto como esse perigando ganhar. 


Então não se trata de um discussão meramente política, é uma questão de valores humanistas. Mesmo se eu achasse as propostas desse Jair sensacionais, eu ainda assim votaria contra ele. “Mas e o PT?” Foda-se! 


Qualquer um! Se fosse qualquer um dos candidatos, de todas as eleições desde 89, contra ele eu votaria. E olha que essa lista tem Maluf, Collor, etc.


Olha, eu também não gosto dessa polarização, externei minha opinião no primeiro turno, votei em outro candidato, acho que esse segundo turno prolongou por 4 anos essa inhaca que estamos passando.


Tenho muitas críticas pesadas ao PT, quem me conhece sabe. Mas não há dúvida sobre qual o voto errado aqui. O mundo está vendo, todos os jornais importantes, de direita e esquerda, de todos os países, estão alertando. Até Madonna e Roger Waters sabem.


Tem focinho de fascismo, rabo de fascismo, orelha de fascismo. O que é?


Tenho pessoas amigas que já estão sentindo na pele os efeitos dessa escalada na intolerância, e olha que ele nem ganhou ainda. Então o que eu estou fazendo é um apelo. 


Pensem bem, vejam de novo os vídeos com as falas abomináveis desse candidato. Não o que ele diz hoje, atenuado pelos marqueteiros, mas o que ele faz e diz há décadas. 


Por favor repensem, não entreguem o país para esse monstro sob o argumento de “pelo menos tiramos o PT”. 


Como Baudelaire tão bem nos mostra, alguns defeitos são sim imperdoáveis.


Leo Moraes - WEB

....

OS OLHOS DOS POBRES
CHARLES BAUDELAIRE-FRANÇA


Ah! Você quer saber por que eu a odeio hoje. Será, certamente, menos fácil para você compreender do que1 para mim, explicar; porque você é, creio, o mais belo exemplo da impermeabilidade feminina que se possa encontrar.
Tínhamos passado juntos um longo dia que me parecera curto. Nós nos tínhamos prometido que todos os nossos pensamentos seriam comuns a um e ao outro e que nossas duas almas não seriam mais do que uma só — um sonho que nada tem de original, uma vez que, afinal, é um sonho sonhado por todos os homens, mas nunca realizado por nenhum.
À noite, já um pouco fatigada, você quis sentar-se em frente a um café novo, na esquina de um bulevar também novo, ainda cheio de cascalhos, mas já mostrando gloriosamente seus esplendores inacabados. O café brilhava. Mesmo as simples tochas de gás revelavam todo o ardor de uma estréia e iluminavam, com todas as suas forças, as paredes de uma brancura ofuscante, exibindo a seqüência de espelhos, o ouro das molduras e dos frisos, mostrando pagens rechonchudos arrastados por cães nas coleiras, senhoras rindo com os falcões pousados em seus punhos, ninfas e deusas trazendo frutas em suas cabeças, patês e caças diversas, as Hebes e Ganimedes apresentando, com os braços estendidos, a pequena ânfora com creme bávaro ou o obelisco bicolor de sorvetes coloridos; enfim, toda a história e a mitologia postas a serviço da glutonaria.
Bem em frente de nós, na calçada, estava plantado um homem de bem, de uns quarenta anos, de rosto cansado, barba grisalha, tendo numa das mãos um menino e sobre o outro braço um pequeno ser ainda muito frágil para andar. Ele cumpria o papel de uma babá e trazia seus filhos para tomar o ar da noite. Todos em farrapos. Esses três rostos estavam extremamente sérios e seus seis olhos contemplavam fixamente o novo café com igual admiração, mas, naturalmente, com as nuances devidas às idades.
Os olhos do pai diziam: “Que beleza! Que beleza! Dir-se-ia que todo o ouro do pobre mundo fora posto nessas paredes.” Os olhos do menino: “Que beleza! Que beleza! Mas é uma casa onde só podem entrar pessoas que não são como nós!” Quanto aos olhos do menor, eles estavam fascinados demais para exprimirem outra coisa senão uma alegria estúpida e profunda.
Os cancioneiros dizem que o prazer torna a alma boa e amolece o coração. A canção tinha razão nesta noite relativamente a mim. Não somente eu estava enternecido por esta família de olhos, como me sentia envergonhado por nossos copos e nossas garrafas, maiores que nossa sede. Virei meus olhos para os seus, querido amor, para ler neles o “meu pensamento”; mergulhei em seus olhos tão belos e tão bizarramente doces, nos seus olhos verdes, habitados pelo Capricho e inspirados pela Lua, quando você me disse: “Não suporto essa gente com seus olhos arregalados como as portas das cocheiras! Será que você poderia pedir ao maîttre do café para afastá-los daqui?”
É tão difícil o entendimento, meu caro anjo, e tão incomunicável é o pensamento mesmo entre as pessoas que se amam.
***

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