FAMILÍCIA BOLSONARO NA CADEIA
Se nada ocorrer, todas as autoridades se sentirão livres para fazer o mesmo a cada quatro anos
Hélio Schwartsman
4.nov.2022 às 17h30
No mundo ideal preconizado por alguns manuais de direito, autoridades não têm a opção de deixar barato. Se existe a suspeita de que um crime foi cometido, o Estado precisa investigá-lo e, se for o caso, processar e condenar seus autores. No mundo sublunar, sabemos que não é bem assim. Por bons e maus motivos, autoridades frequentemente fecham os olhos para algumas situações.
Em breve, Jair Bolsonaro perderá imunidades e o foro especial. Ele deve ser responsabilizado pelos delitos que cometeu? Penso que sim, mas isso não é motivo para não examinarmos a argumentação dos que defendem o contrário. E ela é essencialmente política. Cassar os direitos políticos de Bolsonaro e colocá-lo na cadeia o transformariam numa espécie de mártir para seus seguidores, acentuando ainda mais a polarização.
Para uma corrente da ciência política, o que faz a democracia funcionar é justamente o fato de os derrotados nas urnas nunca perderem muito, o que torna entregar o poder pacificamente e aguardar uma oportunidade de voltar pelo voto a opção mais racional.
Embora os panos quentes possam facilitar a administração dos rancores políticos nos próximos tempos, eles criariam, acredito, precedentes que, no longo prazo, tendem a ser muito negativos, mesmo numa avaliação consequencialista. Bolsonaro não barbarizou só na pandemia, um evento que talvez não se repita tão cedo. Ele também fustigou as instituições e afundou as contas públicas para se reeleger. Se isso ficar sem punição, todas as autoridades se sentirão livres para fazer o mesmo a cada quatro anos.
Há complicadores. Bolsonaro não agiu só. Baluartes do Legislativo, que já vão se bandeando para o lado do futuro governo, foram no mínimo cúmplices do atual presidente. Alguém acha que serão punidos?
A administração da justiça como preconizam os manuais talvez seja uma impossibilidade, se não teórica, prática.
Enquadrado pelo Supremo
A 'rendição' de Bolsonaro se deu perante um tribunal que não se curvou aos seus ataques
4.nov.2022 às 17h46
"Acabou". Essa é a expressão empregada pelo presidente Jair Bolsonaro ao reconhecer sua derrota eleitoral aos ministros do Supremo Tribunal Federal. É significativo que a "rendição" tenha se dado perante um tribunal que não se curvou aos seus ataques, ameaças e desmandos.
Uso o termo rendição pois Bolsonaro sempre teve uma visão degenerada da política. Como outros líderes de extrema direita, Bolsonaro concebe a política não como uma disputa entre adversários, mediada por regras e instituições, mas como uma guerra. Guerra que tem por finalidade eliminar os inimigos e subjugar as instituições voltadas a limitar o poder.
Há um velho ditado da caserna que vaticina: "Na vida militar, ou você coloca os demais em forma ou te colocam em forma". Ao longo desses quatro anos de governo, Bolsonaro buscou enquadrar o Supremo. Ameaçou desrespeitar suas decisões. Ofendeu de forma vulgar ministros. Atiçou seus acólitos contra o tribunal. Incitou o pedido de impeachment de magistrados. Instigou as Forças Armadas contra o Supremo, insinuando que elas, e não o Supremo, receberam a missão de guardar a Constituição. Derrotado nas urnas e sem o proclamado apoio das Forças Armadas, viu-se obrigado a se submeter à autoridade do Supremo.
Para alguns, o Supremo foi além de suas atribuições nestes últimos anos. Discordo. O Supremo, apesar de seus defeitos, apenas reagiu aos ataques à democracia e aos direitos fundamentais desfechados pelo presidente, cumprindo a atribuição que lhe foi conferida pela mais democrática de nossas constituições.
Uma das mais amargas lições deixadas pela ascensão de Hitler ao poder —reiterada pela nova onda de populistas autoritários— é que o povo pode, pelo voto ou por meio de seus representantes, destruir a democracia e os direitos humanos.
Por essa razão, muitos países que se reconstitucionalizaram após as barbáries da Segunda Guerra, ou as experiências perversas da colonização, da segregação racial, dos regimes militares ou de partido único, optaram por conferir às suas cortes constitucionais a tarefa de defender a democracia e os direitos humanos.
Não se trata de uma tarefa fácil e destituída de riscos. Afinal, tribunais não têm artilharia. Muitas cortes altivas sucumbiram nessa jornada. Outras preferiram se omitir em relação aos avanços autoritários, na esperança de serem as últimas a serem devoradas, para tomar emprestado a imagem de Churchill.
Com audácia, o Supremo não se deixou intimidar e agiu para conter o vandalismo institucional de Bolsonaro e seus aliados. Seus tropeços não o impediram de cumprir sua missão. Essa postura independente só foi possível pela conjugação de três fatores. De um lado, as prerrogativas, garantias e incentivos superlativos recebidos pelo Supremo para servir como guardião da ambiciosa Constituição de 1988. De outro, a musculatura política e institucional adquirida ao longo das últimas décadas, em decorrência das inúmeras crises e insuficiências do próprio sistema político que impuseram ao tribunal a necessidade de tomar decisões com forte impacto político. Por fim, o compromisso da maioria de seus ministros com o Pacto de 1988.
O fato é que o Supremo brasileiro, assim como o Tribunal Superior Eleitoral, não capitulou. Deixou claro à extrema direita que não abriria mão de sua obrigação de defender a Constituição. Que não aceitaria um golpe transvestido de legalidade. Enquadrado pelo Supremo, o presidente finalmente reconheceu sua derrota.
Oscar Vilhena Vieira
Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
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