sábado, 3 de dezembro de 2022

PRIVATIZAÇÕES: O GRANDE CONSENSO BURGUÊS * Vinícius Corrêa.Lavrapalavra

PRIVATIZAÇÕES: O GRANDE CONSENSO BURGUÊS

Por Vinícius Corrêa.Lavrapalavra

Faz um mês que Lula derrotou Bolsonaro nas urnas e o debate tem rumado cada vez mais à direita. O que é a um só tempo, previsível e decepcionante, como tende a ser com o Partido dos Trabalhadores. Debate-se o “rombo do orçamento” na economia em um tom de dar inveja aos Sardenbergs da vida. E na educação? Aqui esse debate não existe, pois por que debater algo que é consensual?


Em evento fechado[1] aos movimentos sociais, aos estudantes, professores e entidades de pesquisa em educação, Fernando Haddad realiza um grande encontro sobre educação para pensar nas prioridades “urgentes” para o MEC no futuro próximo. No melhor estilo Fernando Haddad, seus convidados de honra foram Priscila Cruz (Todos Pela Educação), Neca Setubal (Fundação Tide Setubal e herdeira do Itaú), Diniz Mizne (Fundação Lemann), Ana Inoue (Itaú Educação) e Ricardo Henriques (Instituto Unibanco), ou seja, trata-se do mesmo grupo que predou a educação pública e ocupou o MEC na última década e teve nenhum problema em se aliar ao governo golpista de Temer.

Este grupo é comumente chamado de “tubarões da educação” (ou seus representantes públicos, pois não veremos CEOs de Kroton, Positivo, COC e outros nas reuniões), um nome que penso deve ser repensado, pois para qualquer um que tenha ido a um aquário ou assistido a um documentário sobre tubarões fica claro que o comportamento deste predador é muito menos agressivo do que estes agentes, convivendo tranquilamente com suas presas pela sua relativa preguiça e parcimônia, talvez seja melhor chamá-los por outro apelido, mais assustador, porém fidedigno: think tanks e lobistas da educação burguesa pela privatização, publicização e terceirização.

Predando o Estado, este grupo compõe grande parte do CNE[2], MEC, CONSED[3] e UNDIME[4], sendo fortemente financiado por organizações filantrópicas e desinteressadas como Itaú, Natura, Banco Mundial, Ambev e outras, a coalização burguesa em educação é capaz da proeza de formular, regulamentar, implementar, fiscalizar e financiar as políticas públicas, porque está em todos os níveis da administração do Estado.

Se o Estado burguês pode ser descrito de forma leninista como uma democracia para a burguesia e uma ditadura para o proletariado, no caso específico da educação é exatamente desta forma como o Estado se comporta: estudantes, profissionais da educação, responsáveis dos alunos e, talvez mais importante, as necessidades educacionais concretas da população brasileira sempre são completamente excluídos do debate sobre a educação básica.

Basta lembrar da reorganização escolar de Geraldo Alckmin, as OSs de gestão escolar em Goiás, qualquer coisa que a gestão Renato Feder fez no Paraná, mas principalmente o contrato criminoso com a UNICESUMAR para transformar cursos técnicos em aulas online presenciais, e, a sua obra-prima, a contrarreforma do ensino médio por medida provisória assinada pelos excelentíssimos Michel Temer e Mendonça Filho.

Em todos esses casos os estudantes secundaristas demonstraram sua capacidade de auto-organização, pensamento crítico e disposição de luta negando intransigentemente essas tentativas de apropriação privada da educação pública, e, como narra brilhantemente Allan Steimbach em sua tese de doutorado: “os sujeitos que ocuparam [as escolas], antes de mais nada, queriam ser ouvidos, queriam debater, mas tiveram esta possibilidade negada.” (2018, p. 136). Em todos esses casos, os interesses materiais que impediram os estudantes de serem ouvidos eram os mesmos, think tanks educacionais que hoje sentam à mesa e fartam-se com o banquete oferecido pelo PT: de entrada temos reuniões do gabinete de transição, o prato principal é o MEC e as políticas públicas educacionais, a sobremesa são as portarias que abrem espaço para contratos superfaturados com empresas que parasitam o Estado e sacrificam a qualidade educacional (ou seria este justamente o prato principal?); servem os pratos os professores, diretores e pedagogos, recebendo goela abaixo as instruções de secretarias que mal sabem interpretar as políticas públicas formuladas pela burguesia; do lado de fora, esperando alguma migalha estão os movimentos sociais, e principalmente, os estudantes. Cabe aqui novamente a frase de Marx sobre a repetição da história.

Talvez aquilo que nos coloca numa posição mais vulnerável é justamente a posição contraditória do grupo educacional que hoje parasita o MEC. Depois de toda uma pandemia criticando o MEC bolsonarista (mesmo que cooperando fortemente com ele na implementação da reforma do ensino médio) por seu negacionismo sanitário, o Todos Pela Educação repete na educação o que os think tanks econômicos fazem na economia praticando um verdadeiro negacionismo educacional, complemento necessário do negacionismo econômico promovido pelos arautos do ajuste fiscal permanente e a fada da confiança.

Orientados por uma racionalidade econômica vil, o projeto educacional desses think tanks é o mesmo da economia neoliberal, mínimo gasto e máxima precarização, o ponto mais alto dessa racionalidade é o texto “Um ajuste justo” do Banco Mundial, que propõe a necessidade de diminuir ao mínimo a razão aluno-professor, ou seja, maximizar o número de alunos por turma. Qualquer um que tenha sido aluno sabe que uma sala com 20 alunos tem uma qualidade de ensino maior do que uma sala com 40 alunos, qualquer professor que avalie 20 alunos sabe a qualidade de seu trabalho será muito superior do que se avaliar 40 ou 50 alunos por turma, quando o próprio conceito de avaliação diagnóstica cai por terra pela impossibilidade de diagnosticar qualquer coisa quando você mal lembra o nome e o rosto dos alunos.

Outra grande proposta desse projeto educacional é a educação profissional, não importa com quem você converse, a educação profissional parece ser um consenso. Não obstante, a educação profissional do novo ensino médio não é a mesma dos Institutos Federais, pelo contrário, é a educação profissional que nem mesmo um curso técnico é, podendo se dividir em cursos menores que completam uma só carga horária de forma cumulativa, o que talvez seja melhor do que a pavorosa iniciativa de trancar alunos dentro de uma sala de aula para ver vídeo aulas, como nos técnicos administrados pela SEED de Renato Feder.

Por outro lado, temos a educação básica, compreendida pela famosa BNCC, com sua carga horária expandida e diluída, afinal para que física e sociologia se podemos ter Projeto de Vida, Empreendedorismo, Educação Financeira e uma série de outras eletivas que são administrada pelos mesmos professores que perdem as aulas nas disciplinas nas quais se formaram e dedicaram uma vida a aperfeiçoar? Sem falar no caráter ideológico dessas novas disciplinas.

Isso nos deixa com um cenário onde somos obrigados a relembrar o apelido dado ao Novo Ensino Médio: “NEM-NEM”, nem prepara para a educação superior, nem para a vida profissional. De fato passamos da fase da educação dualista divida entre propedêutico e profissional, o problema é que isso foi feito no sentido de aprofundar o fosso que separa às classes sociais no Brasil, e não diminuí-las.

O Novo Ensino Médio foi formulado partindo de um modelo fracassado, a parte básica chamada BNCC foi inspirada na educação estadunidense estabelecida no Common Core, seu objetivo básico é o aumento do aprendizado em áreas cobradas diretamente em testes padronizados internacionais como o PISA, o que faz com que apenas Matemática, Português e Inglês mantenham sua carga horária completa, todas as outras disciplinas tradicionais tiveram suas carga horárias reduzidas. Sem entrar no mérito do fracasso desse próprio objetivo[5], deve-se ressaltar o fracasso histórico dos Estados Unidos nas avaliações, neste caso não faria mais sentido copiar o modelo chinês que frequentemente ocupa as primeiras posições?

O resultado é um fracasso retumbante. Quem está nas escolas reprova o novo ensino médio taxativamente, vemos alunos exaustos com a carga horária ampliada, o desespero dos alunos-trabalhadores do noturno ao ter quatro anos de ensino médio, professores com sua carga horária reduzida se desdobrando em disciplinas como Projeto de Vida e Pensamento Computacional quando veem seus alunos não chegarem à química orgânica ou à ditadura militar, pois estes são tradicionais conteúdos de terceiro ano da química e da história, respectivamente; sem contar o aumento do trabalho burocrático realizado pelos professores oriundo da BNCC, suas competências vagas e o constante desinvestimento da verba educacional que faz com que o pouco pessoal administrativo seja insuficiente para dar conta de todas as atribuições de uma escola.

Mas talvez a pior parte seja a reprovação unânime à disciplinas como Projeto de Vida e as eletivas, impostas aos estudantes e contrárias à própria tradição escolar, essas disciplinas causam um profundo desinteresse e, na realidade, se manifestam como a expressão do tempo excessivo na escola que esgota mentes pela fadiga e, ao contrário do que a propaganda nos diz, afasta ainda mais os estudantes do aprendizado.

Se os professores reprovam a nova estrutura curricular, os alunos a desprezam. Os contrarreformadores iniciam um novo sistema de avaliação, com a brilhante ideia de não haver mais notas, eles apenas esqueceram que os alunos de ensino médio já passaram nove anos dentro da escola e dentro dela foram ensinados que a única motivação para fazer uma atividade é a nota. Triste realidade esta nossa, mas o reformador (ou contrarreformador) que ignora a realidade só pode ser um utopista ou um demagogo, sabemos qual deles são os think tanks educacionais.

Chegamos ao último ponto, e a resistência? Por que apesar de todos esses problemas são com estas pessoas que um governo de esquerda se senta para planejar seu programa educacional? Será se o PT e Haddad não enxergam que o novo ensino médio e os interesses do grande capital não são os mesmos de uma educação emancipadora e popular?

Bom seria se assim fosse, mas a política não é o espaço dos trouxas e dos iludidos. Se se sentam nas mesas com estes aliados, é porque estes aliados são aqueles que ou são ideologicamente afeitos ou seriam inimigos tão formidáveis que é melhor precaver-se. Então vamos ao histórico da figura que comanda o gabinete de transição do PT para a educação.

Fernando Haddad é tudo, menos um político de cariz popular na educação. Ministro da educação no governo Lula, o ex-prefeito de São Paulo sempre deixou claro sua afeição pelo mercado educacional tendo sido sócio-fundador do próprio Todos Pela Educação[6]. Não se trata aqui de uma aliança tática, de uma forte pressão de um adversário implacável, mas uma relação umbilical que já dura mais de uma década entre um dos nomes fortes do Partido dos Trabalhadores para a área da educação. Por isso, só se surpreende com os acenos ao mercado educacional quem não conhece a trajetória do petismo, eis a justificativa do título: há um consenso burguês sobre o novo ensino médio representado pelo Todos Pela Educação, este consenso burguês é adotado de corpo e alma pelo governo eleito.

Portanto, a resistência a isso só poderá vir por fora do futuro governo. Mas devemos nos lembrar de quem está hoje à frente das organizações populares que podem mobilizar-se em direção a pressionar o governo. Da UNE, o PCdoB, da UBES, o PCdoB, da CUT (portanto dos maiores sindicatos educacionais do país), o PT. Sejamos francos camaradas, a resistência ao novo ensino médio será tanto mais árdua quanto haja uma linha de continuidade entre a ação dessas organizações no primeiro período petista no governo e o novo governo do PT que se inicia, já que estas organizações vergonhosamente se ocuparam de apaziguar as contradições de classe e ser uma mera cadeia de transmissão do governo para as bases durante os quatorze anos de governo.

Resta a auto-organização de alunos e professores para criar um debate nacional em torno da necessidade da revogação da Lei 13.415/2017 da reforma do ensino médio e da construção de uma nova reforma educacional, que não se restrinja aos currículos e ao ensino médio, mas altere a própria forma de ser da educação brasileira. Lembremos também, que se o PT será um adversário nessa luta, é um adversário que permite ao menos a possibilidade da discussão da revogação da contrarreforma, enquanto que as alternativas à direita nem mesmo esta possibilidade está em aberto. Temos pouco tempo, mas muita revolta.

Por fim, me permitirei uma indiscrição ao compartilhar uma frase de uma grande lutadora pela educação pública e popular no Brasil ao receber as notícias dessa semana: “Nós fizemos campanha intensa pela eleição de Lula, e hoje estamos tristes e preocupados… foram chamados para conversar os representantes do setor empresarial e privatista. ‘Aperfeiçoar o Novo Ensino Médio’[7] não nos representa, não representa a juventude das 87% das matrículas do ensino médio público do país, então pergunto: qual educação voltou a ser prioridade?”.

É com esta tristeza e preocupação que precisamos lutar pela revogação imediata da reforma do ensino médio, e pela construção da escola popular no Brasil.


Referências:

FARIA, Camila Grassi Mendes de. A privatização da política educacional brasileira: o papel do movimento pela Base Nacional Comum na ampliação do modelo de governança do Estado. Tese de Doutorado em Educação. Curitiba, UFPR, 2022.

FARIA, Camila Grassi Mendes de.; SILVA, Monica Ribeiro. O Movimento pela Base Nacional Comum: configurações da relação público-privado no contexto do ensino médio. In: AZEVEDO, J. C.; REIS, J. T. (Orgs.). Neoconservadorismo e resistência: dilemas da educação pública. Porto Alegre: Editora Universitária Metodista, 2019. Pp. 85-100.

MALINI, Eduardo. O consenso como ponto de partida? Uma análise dos papéis desempenhados pelos atores participantes na formulação do plano de desenvolvimento da educação. Dissertação de Mestrado em Educação. Juiz de Fora, UFJF, 2009.

MARTINS, Erika Moreira. “Movimento Todos Pela Educação”: Um projeto de nação para a educação brasileira. Dissertação de Mestrado em Educação. Campinas, UNICAMP, 2013.

RAVITCH, Diane. The death and life of the great american school system. Ed. 1. Nova Iorque: Basic Books, 2011.


Notas

[1] Para ler sobre o encontro: Haddad reúne representantes de fundações e ex-MEC para discutir educação em governo Lula. Renata Cafardo. Estadão. 07 nov. 2022. Disponível em: https://www.estadao.com.br/politica/haddad-reune-representantes-de-fundacoes-e-ex-mec-para-discutir-educacao-em-governo-lula/. Acesso em 9 nov. 2022.

[2] Conselho Nacional de Educação, órgão permanente de Estado responsável pela regulamentação e implementação de políticas públicas.

[3] Conselho Nacional de Secretários de Educação, associação dos secretários estaduais de educação. Historicamente tiveram um importante papel de contestação do MEC, sobretudo no período FHC, hoje atuam quase como linha de transmissão direta do MEC, os conselheiros possuem grupos de trabalho sobre temas específicos onde a linha política do empresariado educacional serve como orientação. Importante aliado na implementação e concretização da reforma do ensino médio.

[4] União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação, similar ao Consed, mas menor em escala e com menor ligação orgânica com o CNE e o MEC. Ambos Consed e Undime tem fortes ligações com o Movimento Pela Base Nacional Comum Curricular. Sobre este e outras redes de governança empresariais na educação: FARIA, C. G. M. 2022; FARIA; SILVA, 2019; MARTINS; KRAWCZYK, 2018.

[5] Diane Ravitch (2011) avalia o modelo estadunidense e demonstra como seu resultado é a burocratização da educação, de forma que os professores passam a transformar o conteúdo educacional em preparação para os testes, além disso, não aumenta significativamente o conhecimento nessas áreas, sendo mais provável explicar o pequeno aumento da nota dos testes pelo melhor preparo dos alunos para os testes do que pelo conhecimento adquirido.

[6] Erika Moreira Martins (2011) escreveu uma dissertação sobre o movimento Todos Pela Educação onde demonstra que Haddad foi o elo entre o poder executivo e o movimento, algumas das citações da dissertação demonstram isso:

“Neste momento, o grupo que estava à frente do TPE era: Ana Maria Diniz (grupo Pão de Açúcar); Antônio Jacinto Matias (Grupo Itaú); Luís Norberto Paschoal (grupo DPaschoal); Milu Villela (Grupo Itaú-Unibanco); Ricardo Voltolini (Jornalista); Maria Lúcia Meirelles Reis e Priscila Fonseca Cruz, ambas ligadas ao tema de trabalho voluntário e terceiro setor. Por parte do governo federal, a participação no “Pacto” foi corroborada pela presença nas primeiras reuniões do então ministro da educação Fernando Haddad, do então Secretário de educação básica, Francisco dasChagas Fernandes, de José Henrique Paim Fernandes, presidente do FNDE na época, de Gabriel Chalita, presidente do CONSED na época e da então presidente da Undime, Maria do Pilar Lacerda” (p. 53).

“A gente não sabia queia ter um alinhamento tão forte e tão explícito por parte do Fernando Haddad. Se você for olhar, o Ideb, as metas do Ideb, o que compõe o PDE, são totalmente alinhados com as metas do Todos pela Educação (Entrevista 2, diretora executiva do TPE, citada em Martins, 2011, p. 122-123).

Outra análise interessante foi feita por Eduardo Malini (2009, p. 110) em sua dissertação de mestrado, quando traz a seguinte citação:

“Seja como for, o paralelo que se estabelece é a concomitância entre a elaboração do documento Dez causas, 26 Compromissos [elaborado pelo Todos Pela Educação] com a chegada de Haddad ao MEC, como Ministro. Dessa forma começa-se a delinear as formas mais gerais que o PDE iria assumir depois de apresentado à sociedade. A apresentação desse documento ao Ministro fez com que ele se surpreendesse com a capacidade de síntese da equipe do Movimento. Segundo Priscila Cruz [Intelectual orgânica e liderança do Todos Pela Educação], a reação de Haddad foi de perplexidade “’Poxa! Mas isso é tudo o que o Brasil precisa. Vocês conseguiram sintetizar num documento curto tudo que o Brasil precisa colocar na educação. Vocês conseguiram dar um foco, vocês conseguiram dar um norte bem claro’” (CRUZ, 2008)

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