PONTO CEGO
Em meio à música e tensão, a busca pela própria identidade
por Barbara Demerov
Histórias reais de figuras marcantes da sociedade são frequentemente adaptadas para o cinema – sejam elas de um passado muito distante ou próximas do presente. Mas há outro tipo de cinema biográfico, cujos filmes não possuem um protagonista único pois retratam parte da realidade de milhares de pessoas. Este é o caso de Ponto Cego, cuja história de um homem é, na verdade, a representação de muitos.
O primeiro longa-metragem de Carlos Lopez Estrada traz sagacidade e seriedade em perfeito equilíbrio, demonstrando uma diretriz bem focada na rotina dos moradores de Oakland e no quanto as mesmas realidades tornam-se discrepantes de acordo com as etnias de cada um. Ao mesclar poesia (tanto nas falas do protagonista quanto na composição de algumas cenas, que transmitem um ar fora da realidade) com a violência da polícia e o medo que vive dentro do protagonista Collin (Daveed Diggs), é possível sentir a urgência desta história e a necessidade dela ser contada com um estilo que transita entre a descontração e a intensidade.
A cada frase dita em tom de brincadeira, uma verdade; e a cada olhar preocupado de Collin (prestes a sair da condicional), a certeza de que a intolerância permanece de forma inquietante. Em Ponto Cego, tudo acontece pelo olhar do protagonista, que enxerga as diferenças entre si mesmo e seu melhor amigo Miles (Rafael Casal) a partir do momento em que vê um homem negro sendo executado na sua frente. Ao notar a diferença de tratamento entre negros e brancos dentro do mesmo bairro, Collin tenta lidar com um trauma pessoal e que também diz respeito à sociedade. O medo de prejudicar sua condicional vai de encontro com o medo de se tornar parte de uma estatística que não traz justiça, e o roteiro (escrito por Diggs e Casal) salienta bem este sentimento.
Por mais que o visual de Ponto Cego seja colorido e "leve", exibindo a beleza do bairro e união entre os moradores, o peso da temática está sempre ali, presente nas entrelinhas até que vá aparecendo cada vez mais. O porte de armas e drogas entra em pauta, mas não tanto quanto a questão da identidade: o branco se porta como negro, o negro tem medo de ser negro - e se essa abordagem já é forte, imagine quando ela é trabalhada entre dois amigos. Collin e Miles representam uma microparcela da sociedade americana, mas ao mesmo representam muito justamente por serem politicamente opostos.
Ao mesmo tempo em que veem Oakland passar por uma gentrificação que altera suas percepções do local, ambos os homens também ficam confusos quanto a si mesmos, quanto aos seus propósitos e missões como indivíduos. O ato de portar uma arma, por exemplo, resulta em tranquilidade para um e em desespero para o outro - pois um é o vigiado, enquanto o outro é o inocente em qualquer e toda situação. Com o desenvolvimento da amizade entre Collin e Miles e o foco explícito em suas escolhas e receios, é curioso refletir sobre o quanto o filme nos aproxima de cada um através da desigualdade e truculência policial. Temas que, além de serem delicados, não fazem parte da realidade de todos.
Mas não é só de tensão que se forma Ponto Cego: um fator que auxilia na leveza da trama é a música. A trilha-sonora também é composta por canções que Collin e Miles interpretam em forma de rap sobre a rotina que os cerca. Assim como as canções, os diálogos e a dinâmica da dupla são realmente facilitadores de compreensão, fazendo com que nenhum dos dois sejam vistos como criminosos malvados. Na verdade, o que acontece é exatamente o contrário, pois é inquietante perceber que ambos tentam fazer o certo – mesmo que por vias tortas.
A empatia permeia seus personagens e a cidade onde vivem, ao mesmo tempo em que é inevitável sentirmos medo, como se algo trágico pudesse acontecer a qualquer momento. Ao intercalar emoções de maneira fabulosa, como em uma montanha-russa, Ponto Cego não só é um retrato de como o racismo age em nossa sociedade como também nos auxilia a entender mais sobre sua existência de um modo que só o cinema consegue traduzir: aproximando a arte do que é trivial.
ADOROCINEMA
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