domingo, 2 de abril de 2023

DOSSIÊ DITADURA MILITAR NO BRASIL * Frente Revolucionária dos Trabalhadores/FRT

DOSSIÊ DITADURA MILITAR NO BRASIL



AS PERMANÊNCIAS DA DITADURA / REVISTA ÓPERA


N o próximo dia 1 de abril, lembramos o 59º aniversário do golpe de Estado de 1964, odioso evento que impôs ao País 21 anos de um regime de exceção comandado pelos militares em conluio com a burguesia interna e o governo dos Estados Unidos.

Invocar a memória e lembrar dos mortos e torturados no que foram os atos mais sujos e desprezíveis do regime militar é uma inclinação e um dever moral. Mas, sob o risco de que as gerações mais novas imaginem que o protesto contra 1964 se refira só ao passado, não devemos nunca deixar em segundo plano aqueles efeitos da ditadura que se prolongam no presente.

O primeiro e mais óbvio efeito da ditadura foi impedir que as “reformas de base” avançadas pelo governo de João Goulart se efetivassem. Se seguimos sem uma reforma agrária e urbana, é pelo fato de terem sido barradas pelo golpe militar. A concentração fundiária no Brasil, o papel que o agronegócio joga na economia nacional, os assassinatos no campo, a prevalência da escravidão e da semiescravidão, bem como os problemas de infraestrutura, violência e habitação nas cidades – todas características atuais da nossa vida – estão intimamente relacionados ao golpe de 1964 e aos 21 anos de ditadura militar aos quais o País foi submetido. De acordo com dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), entre 1985 e 2021 ao menos 1.914 pessoas foram assassinadas em conflitos no campo. De acordo com o Atlas da Violência do Ipea, de 1989 a 2019 houve 1,44 milhões de homicídios no Brasil. Qual parcela destas mortes seria evitável se as reformas de Jango tivessem se consolidado ainda na década de 60?

Outra permanência da ditadura são os efeitos econômicos do regime. O chamado “milagre econômico” (1968-1973) operado pela ditadura se sustentou em um tripé de: 1) endividamento, entrada de capital estrangeiro e queda constante do salário mínimo; 2) redução de investimentos estatais e abertura de muitos setores ao capital privado; e 3) repressão ao sindicalismo, ao movimento operário e estímulo ao êxodo rural rumo às grandes metrópoles. Entreguismo, achatamento salarial e repressão política foram assim elementos fundamentais da política econômica do regime, que provocou um aumento de 30 vezes no endividamento externo durante o período e uma queda quase pela metade do salário mínimo real entre 1964-1985. O salário mínimo real só voltou ao patamar dos dois anos que antecederam o golpe (média de R$1307,70 a valores correntes) em 2015. A média do salário mínimo real ao longo da ditadura (1964-1985) foi de R$ 995,39 em valores atuais. E a dívida externa só foi “resolvida” – isto é, capturada pela dívida interna, hoje concedendo a vultosa taxa de juros de 13,75% ao ano aos seus compradores – em 2006.

Por fim, a ditadura submeteu parte considerável do aparato de segurança pública (polícias militares) às Forças Armadas, militarizando-as e exportando inclusive as técnicas de “guerra interna” a estes órgãos, ao passo que extirpou das fileiras das Forças Armadas todo e qualquer elemento efetivamente nacionalista, de esquerda, democrático ou progressista que nelas houvesse (cerca de 7 mil militares foram perseguidos pelo regime militar). Além disso, os generais, tutelando o processo Constituinte, conseguiram uma Constituição que, no que tange às Forças Armadas, deixou intacta a organização imposta pelo regime militar. Se temos hoje uma das polícias que mais matam (e morrem) no mundo e um Exército doutrinariamente reacionário e sedento por ocupar a política, isto também podemos atribuir à nefasta ditadura.

Apesar destas permanências da ditadura militar de 1964 no Brasil pós-redemocratização, até 2016 era possível supor, ainda que com algum grau de miopia e um punhado de ingenuidade, que o País lentamente se distanciava dos tempos de chumbo. Era possível argumentar, embora o Brasil tivesse “conservado tudo da ditadura, menos a ditadura”, que aos poucos íamos curando as marcas deixadas no corpo social brasileiro numa longa transição – lenta, gradual e segura – rumo à efetivação dos direitos democráticos. Isto é, que a doença de 64, embora não tivesse sido curada com a redemocratização, seguia sendo lentamente combatida no soro democrático da Nova República. Mas veio o golpe contra Dilma, a participação de militares no governo Temer, o governo Bolsonaro e sua redoma verde-oliva e o 8 de janeiro. Há de se reconhecer que a ditadura não foi uma virose duradoura, mas um câncer, do tipo que, não sendo extirpado por completo, volta a atacar um corpo agora mais combalido.

É verdade que, após terem seus planos frustrados no 8 de janeiro – e não me refiro aqui à bem-sucedida destruição dos prédios do STF, Congresso e Presidência da República, mas à proposta de impôr uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para respondê-la –, os golpistas deram um passo atrás.
Os militares acenam com uma dita despolitização das Forças Armadas, com uma disposição a retomar um “diálogo normal” com o governo Lula, e prometem, inclusive, que não haverá comemorações do golpe de 1964 nos quartéis. É o próprio comandante do Exército, General Tomás Miguel Ribeiro Paiva, quem assume que trata-se somente de dar um passo atrás para, depois, dar dois à frente. No dia 18 de janeiro, o general fez um discurso público (e bastante difundido) tido como legalista e democrático para a tropa, mas em reunião fechada no mesmo dia afirmava, sobre a possibilidade do governo Lula impor reformas às Forças Armadas: “Faz parte da cadeia de comando segurar para que isso não ocorra. Agora fica mais difícil, mas nós vamos segurar, porque o Brasil precisa das Forças Armadas. Da nossa postura, da nossa coesão, da nossa manutenção dos valores, da crença na hierarquia e disciplina, do nosso profissionalismo, depende da força política do comandante e dos comandantes de Força para obstar qualquer tipo de tentativa de querer nos jogar para o enquadramento.”

“Segurar para que isso não ocorra”, obstar “qualquer tentativa de querer nos jogar para o enquadramento” segundo o general, “depende da força política do comandante e dos comandantes de Força”. Depende de acenos e discursos públicos, de silêncios nos quartéis, de amigáveis relações com o presidente, de coletivas de imprensa bem-sucedidas. Embora mude a tática, os fins são os mesmos: segurar, obstar, impedir – em resumo, decidir, como militar, o que fora de uma ditadura cabe somente aos civis.

Se vê que o silêncio autoimposto nos quartéis neste 1 de abril pouco tem de valoroso ou honesto. Opor-lhe o brado das ruas é, portanto, fundamental: não se pode mais uma vez contemporizar com os que insistem, no presente, a nos puxar à força ao passado.

Neste 1 de abril, o Ato Nacional pela punição de Bolsonaro e contra a Ditadura Militar ocorre em 27 cidades:

SUDESTE

São Paulo – SP: 14h – Largo General Osório, 66 (Antigo DOPS)
Ribeirão Preto – SP: 10h – Esplanada do Teatro Pedro II
Rio de Janeiro – RJ: 10h – Arcos da Lapa
Belo Horizonte – MG: 9h – Praça 7 de Setembro
Juiz de Fora – MG: 11h – Cine Teatro Central
Poços de Caldas – MG: 14h – Rua Assis Figueiredo, em frente ao Itaú
Viçosa – MG: 7h30 – Feira Livre (aula pública)
Itaúna – MG: 10h – Praça da Matriz

NORDESTE

Salvador – BA: 10h – Campo da Pólvora
Fortaleza – CE: 9h – Praça do Ferreira
Natal – RN: 9h – Praça do Relógio
São Luís – MA: 9h – Praça Duque de Caxias
João Pessoa – PB: 8h30 – Parque da Lagoa
Campina Grande – PB: 9h – Calçadão da Cardoso Vieira
Petrolina – PE: 9h – Praça do Bambuzinho
Recife – PE: 9h30 – Monumento Tortura Nunca Mais
Caruaru – PE: 9h – Câmara Municipal
Imperatriz – MA: 19h – Sindicato dos Trabalhadores Rurais
Maceió – AL: 9h – Calçadão do Centro

SUL

Curitiba – PR: 9h – Boca Maldita
Florianópolis – SC: 9h – Em frente ao UCE (centro)
Porto Alegre – RS: 15h – Glênio Peres
Pelotas – RS: 14h – Esquina Democrática
Rio Grande – RS: 10h – Largo Dr. Pio

CENTRO-OESTE

Goiânia – GO: 10h – Mon. aos Mortos e Desaparecidos da Ditadura Militar, Av. Assis Chateaubriand, Setor Oeste – próximo ao Bosque dos Buritis

NORTE

Belém – PA: 9h – Escadinha da Est. das Docas
Manaus – AM: 19h – Praça Santos Dumont, 15 – Centro – Próx. ao hospital Santa Júlia


COM BOLSONARO A DITADURA QUER VOLTAR

Nenhum torturador, nenhum assassino de brasileiros e brasileiras em luta contra a ditadura implantada em 64 , foi punido. Assim , ficaram livres para novos crimes, achando que a sua não punição legítima seus atos de torturar e destruir vidas durante 21 anos, de que jamais devemos esquecer.

Como a ditadura militar brasileira e seus facínoras não pagaram pelos seus feitos, diferentemente do que se deu com as da Argentina, Uruguai e Chile, onde até seus presidentes foram para a cadeia, há 59 anos ,ela sempre ameaça ressuscitar-se, na pessoa de seus herdeiros, à vontade para defendê-la.

Tivessem sido condenados ela seus criminosos, além de trabalhos de ataque a seus espectros a circularem pelo Brasil afora, em conciliábulos sem limites, não haveria espaço para o surgimento de Bolsonaro, acompanhado da alma do Almirante Ustra, um dos maiores e cruéis assassinos do período ditatorial, responsável por torturas e esfacelamento de vidas, em porões do regime.

Como Argentina, Uruguai e Chile agiram com outra forma de tratar os criminosos de suas ditaduras, contrariamente ao que se dá no Brasil, ficam livres do aparecimento de um similar a Bolsonaro em seu processo político.

Aqui, um inimigo da democracia não só se vê à vontade para defender uma ditadura de décadas e seus assassinatos como também, ainda mais, vira presidente do país , conspirando contra a ordem democrática a partir do próprio Palácio do Planalto.

Se a esquerda em particular sempre houvesse realizado campanhas de esclarecimento ao povo que significa uma fase das mais macabras da história do Brasil, um neofascista de farda, sem disfarce, jamais obteria condição de sequer virar candidato a Presidente da República.

Que façamos encontros e mais encontros esclarecendo a população por que o Brasil é o único país da América do Sul em que um ex-fardado fascista pode atentar noite e dia contra a democracia, inclusive, acolhido por grandes redes de TV, como a CNN, em longos pronunciamentos.

Alberto


ALERTA AOS CANSADOS

Wilson Coêlho

Conforme dizia Bertolt Brecht, “há homens que lutam um dia e são bons, há outros que lutam um ano e são melhores, há os que lutam muitos anos e são muito bons. Mas há os que lutam toda a vida e estes são imprescindíveis”. A priori, pode parecer um mero axioma, principalmente para os que se recusam a averiguar o que está por detrás dessa afirmação.

Mas o que é a luta? Para muitos, a palavra luta é reduzida como o esforço feito por duas pessoas ou de um grupo de indivíduos para vencer outras pessoas e até mesmo a ação de duas forças totalmente opostas. Isso acontece muito nos esportes. Para outros tantos, o significado dessa palavra está na ideia de luta pela vida, assim como se dá na natureza onde as espécies estão em permanente peleja para garantir sua sobrevivência.

Nesse caso, o da natureza, é muito confundido nas interpretações do que diz respeito à sobrevivência, principalmente, porque a base da sociologia como um dos pilares das ciências humanas está nas ciências naturais. Não é por acaso que muitos desavisados insistem em mencionar uma comunidade de abelhas como modelo de perfeição para a organização social. Mas tem um detalhe muito importante: as abelhas não pensam, não elegem a sua rainha. As abelhas são naturais, ou seja, têm uma natureza, ao passo que o ser humano não é natural.

O ser humano não nasce humano, ele se humaniza a partir de sua cultura. Tanto as abelhas, como os cavalos, as tartarugas e todas as espécies animais já nascem o que são e nem sabem o que são, nós é que as nomeamos e as classificamos como tal. O ser humano, que não nasce humano, mas que se humaniza conforme sua cultura, nasce nada. Ninguém precisa dizer a uma tartaruga que ela sabe nadar, mas ela – mesmo nascendo na areia – vai para o mar sem nenhum problema ou medo.

Os seres humanos não têm uma natureza que já lhes garante lidar com o mundo da forma como nasceram. Todos os animais falam a mesma língua de sua espécie em qualquer lugar do planeta e assim se comunicam. Os seres humanos não falam se não forem ensinados e, conforme já dito, isso é colocado pela cultura. O macaco, o jacaré e tantos outros animais caminham e se movimentam sem que ninguém lhes ensine. Os seres humanos precisam de alguém que lhes ensine a caminhar, caso contrário, podem até rastejar. São inúmeros os exemplos para demonstrar que não devemos confundir as questões humanas, que não têm uma natureza, e as questões naturais que têm as suas próprias leis. Talvez esteja aí o x da questão. Sendo os seres humanos os mais frágeis de todo o planeta, a natureza os dotou da inteligência para criar os mecanismos da sobrevivência. O pior é que, na impossibilidade de usufruir dessa inteligência para construir o sentido da existência, muitos desses seres humanos preferiram se esconder ou se justificar a partir de sua mais dissimulada criação: a religião.

Mas voltando ao tema da luta, essa palavra tem sua origem no termo em latim “lucta”, derivado do primitivo “LUITA” que significa esforço, luta, dedicação. Assim entendido, não existe como viver e não lutar ao mesmo tempo. Parafraseando Descartes, “luto, logo, existo”. Não existe como viver e não lutar, em nenhum sentido, ou seja, lutar e existir são o mesmo. Mas o mais interessante é entender de que lado estamos na luta. Não existe neutralidade.

É muito comum nos depararmos com pessoas que dizer estarem cansadas de lutar. Essa expressão soa sempre como estúpida ou de má fé. Socialmente falando, os que se dizem cansados da luta, na verdade, nunca estiveram de verdade na luta, exceto, em suas atitudes egóicas, na defesa de seus próprios egos, como parte nuclear de suas personalidades.

Há os que dizem que estão muito velhos e se cansaram. Primeiro, só existe uma possibilidade de não ficar velho: é morrer jovem. Mas desde o momento em que se ficou velho, tem uma questão de contingência, a luta continua. Faz-se necessário entender de que lado se encontra.

Não como Raul Seixas, em “Eu nasci há dez mil anos atrás”, sobre “um velhinho na calçada com uma cuia de esmola na mão”, lembro de uma história que me foi narrada. Dizia de um determinado sujeito que vivia numa encruzilhada que sempre contava uma história aos transeuntes. Passou um outro e ouviu atentamente sua história, mas – no final – perguntou:

- Eu passei aqui, faz 30 anos e você me contou isso. Por que insiste em contar a mesma história de 30 anos atrás?

- O dia em que eu deixar de contar essa história significa que eu fui vencido.

IMORAL DA HISTÓRIA: O mundo em que vivemos hoje começou a ser construído a, pelos menos, 8 mil anos. Como é que podemos em nossa pouca existência possamos ver os resultados de nossas lutas em tão poucos anos se vivemos no máximo 80 ou 90 anos?


1964:GOLPE NA POESIA

Marcelo Mário de Melo

Além de antidemocrático, antipopular e antinacional, o golpe de 1964 foi também antipoético. No dia primeiro de abril vi tombar na passeata, atingido por tiros de mosquetão, o companheiro Jonas Barros, cantando o hino nacional e escudado na bandeira brasileira. Jovem militante comunista do Colégio Estadual de Pernambuco, Jonas escrevia poemas de muita sensibilidade e leveza.Também foram fuzilados Ivan Aguiar, comunista de Palmares e aprovado no vestibular para Engenharia, dizendo-se que também o foram um homem e uma mulher não identificados.

Os poetas Ângelo Monteiro e Albérgio Maia de Farias, que tinha 16 anos, foram presos no DOPS. Para comemorar a libertação de Newton Farias, militante bancário, irmão de Albérgio, foi marcada uma farra secreta nos fundos da venda do Velho Pires, no bairro da Soledade. Entre cervejas, canções e poemas, Rui Alencar sentenciou: “as noites de sábado dos poetas/alimentam a resistência dos patriotas.

Estudantes de esquerda faziam o jornal O Secundarista, com boa tiragem e impresso em cores, idealizado e articulado por José Fortuna de Melo, meu irmão, o meu nome constando como secretário, editado por Rômulo Lins, onde publicavam poemas Albérgio Maia de Farias, Ângelo Monteiro, Marcus Accioly, Anamárcia Veinsenher, Luis Carlos Duarte, Rômulo Lins, Diógenes Caldas e outros.

O jornal não pôde mais ser editado e os seus responsáveis e colaboradores que não foram presos tiveram de se esconder da repressão ou calar a voz. Agnaldo Silva e José Wilker colaboravam com artigos.

Ângelo Monteiro incorporou-se às atividades políticas da esquerda e desenvolveu uma intensa militância estudantil, marcada pela declamação de poemas desse teor:“E os verdadeiros cristãos/de fé robusta e viril/ com o cano do seu fuzil/farão o sinal da cruz” .Também fazia longos discursos previamente decorados: “Como católico, ouço a voz de Sua Santidade o papa. Como revolucionário, ouço a voz de sua Santidade o povo.”

Alberto Cunha Melo e Jaci Bezerra acompanhavam a esquerda nas disputas estudantis. Depois do golpe, Jaci editou e distribuiu no Colégio Estadual de Pernambuco um jornal mimeografado intitulado Letras.

Um subproduto poético publicado no Suplemente Literário do Diário de Pernambuco, em 1965, foi objeto de gozação de Stanislaw Ponte Preta na sua coluna na Última Hora do Rio. Era um longo texto do tenente-coronel Dácio Vassimom, chefe do estado maior do IV Exército, louvando a Cruzada Democrática Feminina com coisas assim: “pelas ruas do Recife desfilando/a corja comunista desacata/sem temer uma bala ou um sopapo/a lembrar o que foi Tejucupapo”. Nas citações que fez, Stanislaw não se referiu a versos: falou em pedaços.

Na clandestinidade, de vez em quando eu me lembrava da tirada de Rui Alencar sobre as noites de sábado dos poetas. De março de 71 a abril de 79 foram oito anos, 43 dias e 19 horas de prisão e poesia, entre a Casa de Detenção do Recife e a Penitenciária Professor Bareto Campelo, em Itamaracá. Perdi nos aparelhos clandestinos e nas fugas um volume datilografado com todos os meus textos. A partir daí, passei a decorá-los.

Também escreviam poemas na prisão, Chico de Assis, Juliano Siqueira (RN) e Cláudio Gurgel (RN) Chico Passeata (CE), Severino Quirino (o Poeta da Fome, de Caruaru), e Antônio Ricardo Braz, cirandeiro de Timbaúba. Recebi livros de Ângelo Monteiro e Luis Carlos Duarte, que ainda conservo.

Minha obra completa de Castro Alves foi apreendida pelo major diretor da penitenciária, o famigerado major Siqueira, junto ao Aprendiz de Crítica, de Joel Pontes, e centenas de livros foram subtraídos dos presos políticos e revendidos em sebos.

Contrabandeamos por partes o Poema Sujo, de Ferrreira Gullar, cuja leitura me fez subir um degrau na tabela do exercício físico.

Virando a página, o Os Quatro Pés da Mesa Posta, publicado pelas Edições Pirata em 1980, foi uma amostra de 38 dos meus poemas carcerários.

(Publicado no Jornal do Comércio, Recife)


"Stuart, o boi voador”

Hildegard Angel

Queimando por dentro, com os pulmões assados, Stuart morreu sem pedir clemência. Pediu água, bateu asas e voou..26 de março de 2023

Chico Buarque de Holanda descreveu minha mãe como “ferida de morte e rindo”.

Sim, em meio à tragédia, enrolada aos panos pretos de seu luto ostensivo, Zuzu Angel soltava uma gargalhada. Não era desvario, era a disposição emuladora para a luta, que não a deixava sucumbir.

A cada nova escaramuça bem sucedida, ela vibrava em suas duas frentes de batalha.

A primeira, na busca do corpo de seu filho, de quartel em quartel, de porta em porta das autoridades, de nomes da imprensa, de qualquer pessoa que a quisesse escutar.

A outra frente era a de denúncia, no exterior, dos horrores praticados nos porões da ditadura brasileira.

Para isso, não havia limites. Desde se vestir de turista americana e conseguir chegar ao inatingível Henry Kissinger, no hotel Sheraton Rio, onde o Secretário de Estado americano era cercado por segurança máxima, a realizar um inédito desfile, até então no mundo da moda, de uma coleção de vestidos de protesto e denúncia política, em casa do cônsul-geral do Brasil em Nova York, Mario Soutello Alves, com presença de representantes das agencias de noticias mais importantes do mundo, Reuters, Associated Press, Tass e outras.

Quando retornava ao Rio de Janeiro, Zuzu elencava os troféus conquistados em sua guerra solitária para denunciar a morte de Stuart e que se parasse de torturar e matar jovens, nos cárceres militares do Brasil. E ria.

Assim como ria, quando chegava à sua loja glamurosa, e participava às clientes – “estou voltando das injeções para apagar as veias das pernas, porque, quando os gorilas me prenderem, das minhas varizes eles não vão rir”. Seria cômico se não fosse trágico.

Em meio ao sofrimento, Zuzu fazia as modelos, Elke Maravilha entre elas, desfilarem suas roupas alegres no ateliê, ao som do “Boi voador”, do Chico, e cantarolava junto “Quem foi, quem foi / Que falou no boi / Manda prender esse boi / Seja esse boi o que for”.

Era um deboche dos militares, chamados por ela de “milicos”, que proibiam ‘bois voadores’ de voar, imaginária e incontrolável manada, em que ela se incluía.

Mas, se, por um lado, com a repercussão de suas ações, Zuzu Angel conseguiu derrubar o Ministro da Aeronáutica da época, o Comandante da Força Aérea e o torturador de seu filho, o brigadeiro Burnier, logrando evitar novas mortes no Galeão e em outras instalações militares no Rio de Janeiro, minha mãe coragem não conseguiu a confirmação oficial do assassinato do filho, em 15 maio de 1971, do qual havia como evidência apenas uma carta do preso Alex Polari d’Alverga.

Assim, entre sucessivas negativas dos militares, chegando ao requinte de hipocrisia de julgarem Stuart à revelia, depois de morto, como se vivo estivesse, minha mãe morreu com uma esperança, mesmo recôndita, fugidia, de que tudo fosse um grande engano, de que Stuart permanecia vivo, foragido, em paradeiro não sabido, e apareceria à sua porta. Ah, como sonhou com isso!

À noite, ela balbuciava “Tuti, Tuti”, e eu, no meu quarto, que se comunicava com o dela, ouvia o lamento, sem poder confortá-la.

Na madrugada de 14 de abril de 1976, Zuzu Angel foi eliminada, numa emboscada comandada por um agente do governo brasileiro, coronel Freddy Perdigão, a partir de ordem dada diretamente pelo gabinete de Ernesto Geisel, segundo depoimento do agente do DOPS Claudio Guerra.

Exatamente 20 dias antes daquela data, em 29 de março de 1976, o oficial da Aeronáutica, Marco Aurélio Carvalho, lavrava num cartório em Caxias, no Rio de Janeiro, uma Declaração em que confirmava a captura, o interrogatório, as torturas e a consequente morte de meu irmão, Stuart Edgar Angel Jones, que ele próprio testemunhara e de que participara.

Apenas 52 anos depois, este documento seria revelado, na noite da última quinta-feira, 23 de março de 2023, quando fui alertada pela jornalista Chris Ajuz e pelo editor José Mario Pereira, dono da Topbooks, de que o leiloeiro Alberto Lopes anunciava, entre os lotes que iriam a pregão na internet no próximo 5 de abril, este documento histórico da maior gravidade.

Acessei o catálogo do leilão, sem conseguir coragem para ler a Declaração, o que não me impediu de agir.

Procurei a promotora Eugenia Gonzaga, casada com o jornalista Luiz Nassif, que me orientou sobre a necessidade de um mandado de busca e apreensão.

Enviei um What’sApp ao meu amigo advogado Carlos Roberto de Siqueira Castro, que eu julgava estar no exterior, e telefonei para o criminalista Antonio Carlos de Almeida Castro - Kakay, também pedindo seu auxilio.

Ambos acordaram que o melhor a fazer seria entrar em contato com o leiloeiro, como fez Kakay, e em seguida com o colecionador, que, sensibilizado, retirou o lote do leilão, dispondo-se a encaminhá-lo a nós. A compaixão existe.

Só na tarde de sexta-feira consegui forças para ler o documento. Revi meu irmão, na sua cortesia e doçura, deixar-se prender sem reação e, com sua firmeza e legitimidade, deixar-se torturar e matar, sem trair suas convicções políticas e seus ideais. Sobretudo, sem trair seus companheiros do MR-8, que confiaram a ele, apenas a ele, a missão de saber o endereço onde se refugiava Carlos Lamarca.

Não houve afogamento, choque elétrico, pau de arara, cadeira de dragão que o convencessem a trair a confiança de seus companheiros.

Não houve fumaça de óleo diesel que o fizesse falar. Queimando por dentro, com os pulmões assados, Stuart morreu sem pedir clemência. Pediu água, bateu asas e voou. Como um angel, como um boi voador."

DITADURA CIVIL MILITAR
ENTREVISTADO IVAN SEIXAS * SANDRA CABRAL - SEPE.RJ

Projeto : *"A HISTÓRIA QUE O LIVRO NÃO CONTA"*

Organização  SEPE NÚCLEO COSTA LITORÂNEA 


Especial: *DITADURA CIVIL MILITAR*


Apresentação *IVAN SEIXAS*

Jornalista e ex integrante do MRT - MOVIMENTO REVOLUCIONÁRIO TIRADENTES


*PARA QUE NUNCA SE ESQUEÇA!*

*PARA QUE NUNCA MAIS ACONTEÇA!*

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O capitalismo está podre. Todos sabemos disso. Mas ele não cai sozinho