quinta-feira, 31 de agosto de 2023

COMO A MÍDIA MENTE * Bepe Damasco/Pátria Latina

COMO A MÍDIA MENTE
Bepe Damasco/Pátria Latina
Imaginemos um país no qual um governante de esquerda monta uma frente contra o fascismo e obtém uma épica vitória eleitoral, derrotando um Estado corrompido e autoritário, posto a serviço do presidente de turno?

Só que o novo mandatário, por motivos que dariam margem a estudos aprofundados, elege poucos deputados e senadores afinados política e ideologicamente e se vê forçado a negociar com a majoritária banda conservadora e reacionária do legislativo de seu país.

É a única maneira de aplicar o máximo possível seu programa de governo e não trair promessas de campanha. Até agora a missão vem sendo cumprida, pois apresenta um cipoal de realizações, em apenas oito meses de mandato, digno de nota.

Mas, nesta nação, existe um oligopólio midiático, liderado por uma poderosa empresa de comunicação. Esse grupo diverge radicalmente dos ideais do chefe do governo e tem urticária só de ouvir falar em soberania popular e nacional, justiça social, estado como indutor do desenvolvimento, bem como de inclusão de pobres no orçamento.

Ato contínuo, monta-se um cerco ao governo, na linha do “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.”

Vejamos:

Fato 1: Governo encontra dificuldade na tramitação de algumas matérias de seu interesse no parlamento.

Imprensa corporativa: “A articulação política do governo é incompetente e não consegue formar uma base de apoio forte no Congresso.”

Fato 2: Governo consegue aprovar novas regras fiscais e quebra o tabu da reforma tributária.

Imprensa corporativa: “Na verdade quem saiu vitorioso foi o presidente da Câmara dos Deputados. O governo não tem mérito no resultado, pois mais atrapalhou do que ajudou.”

Fato 3: Para emplacar matérias relevantes para o país, o governo, nas negociações com o parlamento, flexibiliza alguns pontos e desiste de outros.

Imprensa corporativa: “Governo foi emparedado pelo presidente da Câmara dos Deputados.”

Fato 4: Governo resiste a pressões para entregar ministérios estratégicos ao bloco conservador, liderado pelo presidente da Câmara.

Imprensa corporativa: “Presidente prejudica o país ao adiar indefinidamente a reforma ministerial.”

Fato 5: Mudanças no ministério ganham contornos mais nítidos e seu anúncio é questão de dias.

Imprensa corporativa: “Governo sacrifica aliados e se rende aos partidos de centro e de direita.”

Fato 6: Resultados positivos da economia já se refletem nas pesquisas.

Imprensa corporativa: “Os números promissores da economia nada tem a ver com o governo, mas sim com outros fatores. O atual presidente da República é um sujeito de sorte. Além disso, seu avanço nas pesquisas deve-se, principalmente, ao desgaste do ex-mandatário.”

Moral da história: deve ser exasperante viver em um país cujos veículos de comunicação fazem da desonestidade intelectual e da manipulação política as molas-mestras de sua atuação.

quarta-feira, 30 de agosto de 2023

AS EMPREGADAS DOMÉSTICAS E A OPRESSÃO PATRONAL * José Bessa Freire-RJ

AS EMPREGADAS DOMÉSTICAS E A OPRESSÃO PATRONAL
José Bessa Freire

“Estou sem assunto. Lanço, então, um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica”. (Fernando Sabino. A Última Crônica. 1963)

Parece até parábola do Evangelho com ensinamentos sobre a vida. Ou história contada em Nheengatu pelos indígenas do Alto Rio Negro, na qual o Jabuti sabido exerce sua doce vingança. Essa aconteceu mesmo e foi relatada oralmente na Academia da Terceira Idade (ATI), no momento em que se alastra pelo Brasil a violência crescente, física e simbólica, contra empregadas domésticas. Se me permitem, descrevo antes o cenário e o contexto, no qual rolam muitas histórias narradas, enquanto as pessoas se exercitam.
Há cerca de dez anos, este velhinho que vos fala frequenta uma ATI em Icaraí para praticar gratuitamente exercícios físicos nos equipamentos instalados pela Prefeitura de Niterói. Lá convivi com vários grupos, em diferentes horários. Com o tempo, a gente acaba sabendo os nomes das pessoas, o perfil profissional e aspectos da vida privada de cada uma delas ou pelo menos das mais falantes.
O primeiro grupo é de quem acorda de madrugada: as domésticas na faixa dos 40-50 anos, residentes em São Gonçalo e morros adjacentes. No horário seguinte, os aposentados: militares e outros profissionais. Mais tarde, o turno subsequente é de quem não costuma madrugar: as madames. A escala não é tão esquemática assim, algumas vezes antes de uma turma se pirulitar, alguém do outro time chega mais cedo ou alguém sai mais tarde e há uma mistureba devida a tais infiltrações.
Inicialmente, frequentei o horário dos aposentados, com um ou outro milico até simpático e amável. Mas em 2018, na eleição presidencial, não suportei o papo da maioria fanática e obtusa. Mudei de turno. Subi, então, para o grupo das patroas, que também propagavam em voz alta as fake news em defesa do Mito, intercaladas com relatos esnobes de viagens à Europa incapazes de apreciar as diferenças culturais vistas com um olhar etnocêntrico e xenófobo. Elas entram nos países, porém os países não entram nelas. Então, eu entrava calado e saía mudo para evitar estresse. Mesmo assim não aguentei. Desci para o turno das empregadas, mas veio a Covid-19 e a ATI se esvaziou.

A sala e a cozinha

No pós-covid e especialmente após a eleição de Lula, patroas e milicos se escafederam e o ambiente ficou menos tenso. As empregadas domésticas tomaram conta do pedaço e as conversas passaram a rolar mais livremente. Eu ficava na minha, meditabundo, sem me manifestar. Apenas um “bom dia” formal na entrada para cumprir tabela. Só desmeditabundei quando comentaram o caso da babá agredida em Manaus pela mulher de um policial, em imagens que viralizaram divulgadas nos telejornais.
Foi aí que ouvi a história exemplar que agora conto, narrada por Lena aos usuários da ATI sobre o tratamento dispensado à sua amiga Liza, empregada em apartamento na Praia de Icaraí com vista para o mar. Ela chegava diariamente às 7h00, com pontualidade britânica, para evitar quea patroa de 60 e tantos anos, que nunca lhe pagava as horas extras, descontasse o atraso.
Liza era faxineira, lavadeira, passadeira e cozinheira, além de prestar assistência ao patrão demente com Alzheimer e de servir de babá dos netos – contou Lena, a narradora, enquanto se exercitava no simulador de caminhada, balançando pra frente e pra trás. Ela completou: – o salário da minha amiga era miserável, mas pelo menos o contrato incluía o direito ao café da manhã e ao almoço.
Que café! Um senhor café! Na mesa da sala, vários tipos de pães quentinhos, baguetes, queijos, bolo caseiro, ovos mexidos, panquecas, granola, café, chá, leite, suco de frutas, geleia e mel. Isso para a família. Para a empregada, desterrada na cozinha, só café preto com pão velho e dormido. E o almoço?
Voltamos aos nossos estúdios. É com você, Lena, que sabe contar histórias. Como era o almoço?

O desenlace fatal

Um senhor almoço! – garantiu Lena. A família degustava os deliciosos quitutes feitos pela empregada. Um dia, Liza preparou um filé mignon de cor rosada com alho, pincelado de mostarda e um feijão gostoso, cujo tempero podia figurar no show gastronômico do chef de cuisine Claude Troisgros. Serviu tudo na mesa da sala. Mas na cozinha, o seu pratinho trivial era diferente.
Aqui a narradora Lena parou de balançar no simulador de caminhada e sua voz tremeu de indignação para revelar que a patroa proibiu Liza de saborear a mesma comida da família. A megera tirou da geladeira um feijão congelado, amassado quinze dias antes na peneira para dar o caldo ao neto. Era só palha. Disponibilizou ainda uma salsicha ultra processada, sebenta e gordurosa, com aditivos, nitritos e nitratos.
Liza não comeu aquela porcaria e disse à patroa que a partir daquela data traria a comida de sua casa. Foi advertida que o salário continuaria o mesmo. No dia seguinte, trouxe efetivamente marmita com filé mignon, puré de batata e uma supimpa salada de alface, tomate-cereja, palmito de pupunha e manga. De sobremesa, uma maçã gala vermelha. Dona Lucinda – esse é o nome da patroa – intrigada, não acreditou no que viu:
– Você trouxe isso de casa?
Por via das dúvidas conferiu os filés na geladeira e contou as maçãs. Não deu falta de nada. Estava tudo em ordem.
Aí quem esnobou foi Liza, cujo marido acabara de arrumar um emprego como vigilante numa construção e ela pôde, assim, fazer aquela extravagância uma única vez. Mentiu:
– Em casa comemos sempre assim.
Foi então que ocorreu o desenlace fatal.

A alma lavada

No dia seguinte, dona Lucinda desperta às 9h00 e encontra a mesa da sala vazia. Nada de Liza. Telefona e cobra com voz autoritária:
– Liza, são 9h00 horas, o que aconteceu?
– Aconteceu que o seu telefonema me acordou – mentiu Liza outra vez, com voz fingidamente sonolenta.
– Você está dormindo até agora? Vou descontar do teu salário? Venha já para cá – ordenou Lucinda, que esqueceu o 13 de maio de 1888. Mas Liza lembrava da data:
– Não vou hoje, nem amanhã, nem nunca mais. Fique com o meu salário, porque agora a senhora é que vai ter de cozinhar.

Nunca fariseus e fariseias receberam um tapa assim com luva de pelica – disse naquele tempo um Mestre a seus discípulos. Em verdade em verdade vos digo, nem Cafarnaum, nem Jericó testemunharam ajuste de contas tão justiceiro e com “tanta classe” como esse ocorrido em Icaraí.
Quando Lena, a narradora, terminou o seu relato, não me contive, rompi meu silêncio obsequioso e gritei:
– Essa história lavou minha alma.
Contei a ela que vejo em cada empregada doméstica uma senhora de nome Elisa – olha a coincidência – que trabalhou no turno da noite, varrendo as salas e recolhendo o lixo no Grupo Escolar Cônego Azevedo, no bairro de Aparecida, em Manaus, mãe de 13 filhos, entre os quais esse velhinho que vos fala.
No final do relato de Lena, participamos de uma espécie de dabacuri, o ritual indígena que celebra a fartura de comida e a união das pessoas. Lizete, uma das frequentadoras da ATI, trouxe no ônibus várias pencas de banana plantadas no quintal de sua casa. Generosa, nos convidou a comer banana prata e banana ouro.

Valeu a pena seguir o conselho de Fernando Sabino. Ele tinha de escrever sua crônica para o jornal e estava sem assunto. Foi tomar café no balcão de um botequim, quando viu um casal de negros comprar a fatia de bolo mais barata e colocar nela três velinhas. Discretamente, o casal cantou baixinho o parabéns para a filha, uma negrinha linda que aniversariava. O pai, no início constrangido, viu o olhar cúmplice do cronista e logo se abriu num sorriso.
– Assim, eu quereria a minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso – escreveu Sabino.
Espero que essa crônica sobre empregadas domésticas, que não é a última, reforce aquela gargalhada gostosa que tomou conta da ATI, zoando a dona Lucinda. Doce vingança de Jabuti.

P.S. Ver também sobre o mesmo tema cronica de abril de 2018: https://www.taquiprati.com.br/cronica/1391-papo-de-velho-%E2%80%9Cai-meu-deus-so-jesus-na-causa%E2%80%9D
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terça-feira, 29 de agosto de 2023

segunda-feira, 28 de agosto de 2023

AONDE VAI O 'TIO SAM'? * Adhemar Bahadian

AONDE VAI O 'TIO SAM'?
Adhemar Bahadian

"Democracia e bem-estar social: a crise artificial e global.

De todas as crises que estamos a viver neste século 21, que mal chega a sua adolescência , nada assusta mais do que as metástases do tecido social nos Estados Unidos da América.

Talvez, no futuro( qual deles?) os historiadores tenham a oportunidade de melhor explicar porque estivemos à beira de nos transformarmos numa sociedade de bárbaros em que a luta pela sobrevivência colocou em risco o próprio planeta.

Nossa crise é civilizacional, climática, moral e religiosa. Tudo devidamente misturado e difundido como verdades absolutas com o impacto babélico de nos distanciar uns dos outros, cidadãos de um condomínio chamado planeta Terra, um grão de areia metido a Lorde na Via Láctea, avenida salpicada de estrelas, verdadeira e única Broadway .

Quanto mais penso no que nos aflige, mais me convenço que nossos historiadores do futuro se referirão aos nossos dias como a Era da Maracutaia coletiva, em que o roubo pequeno ou grande é mais uma questão ideológica do que uma violência aos princípios morais com que nossos pais nos educaram.

Como classificar, por exemplo, um candidato à Presidência da República da até pouco tempo considerada a matriz democrática do mundo ocidental? Como digerir as reiteradas mentiras e desonestidades que marcaram sua trajetória como homem de negócios e político arrivista ? Qual o impacto do exemplo de seu estilo de vida cafajeste- mafiosa nas mentes dos mal-saídos das fraldas escolares e apenas tem como meta “cacifar”, tão rápido quanto possível, o primeiro milhão de dólares, seja como bônus de artimanhas financeiras seja como manobras ligeiramente vergonhosas de subtrair do fisco o que lhe é devido? A honestidade é para trouxas.

Historiadores e analistas contemporâneos advertem para o grande assalto ao trem pagador da transvia Neoliberalismo- Globalização, com paradas de abastecimento nas chamadas plataformas radicais da privatização e da austeridade fiscal. Hoje, não há quem não saiba que nos últimos 50 anos a grande revolução do capitalismo predador foi acalentar o capital e esfolar o trabalho. De quebra, uma estúpida incapacidade de colocar a tecnologia a serviço do emprego . E não fazer dela uma alavanca de desemprego global.

A grande esperança de que a globalização poderia beneficiar a todos beneficiou basicamente a China . Os Estados Unidos da America conheceu o empobrecimento relativo da classe média e a penúria da mão de obra com nível médio de escolaridade.

As reações contra o regime democrático e as tentativas de candidatos a autocratas de questionar as instituições são particularmente tendenciosas porque o neoliberalismo e a globalização desmontaram as redes de proteção social vigentes até os anos 80 do século 20 e rapidamente as substituíram por incentivos ao capital transnacional ,com a eliminação de regras como as de controle de monopólios e cartéis e uma liberalização comercial internacional francamente desequilibrada. Reagan e Thatcher como porta-bandeiras.

Espanta ver um candidato populista e autocrático como Trump a debochar da boa fé de cidadãos americanos, com a promessa de melhores dias com o aniquilamento do que ainda resta de proteção social, como o seguro-saúde, por exemplo.

O pior de Trump é que seu eventual novo mandato terá implicações danosas para países como o Brasil, sem falar no grande impacto sobre as próprias regras democráticas . É, porém, mal que não acredito se viabilize. Não merecemos .

Quando se olha para o Brasil - e não desconheço as enormes dificuldades que estamos a atravessar, em grande parte por um mimetismo trumpista- é forçoso reconhecer estarmos num processo de reconstrução democrática e social.

Lula retoma com os programas sociais, inclusive de apoio ao trabalhador sindicalizado, uma rota reconhecida como de grande retorno econômico. As vozes que se levantam contra os esforços de saneamento econômico e fiscal proposto pelo governo, certamente nos querem convencer de que o capitalismo neoliberal e suas chagas mundo afora seriam melhores que o desenvolvimento econômico acompanhado do Estado Democrático de Direito, conforme nos manda a Constituição de 1988.

A crise da Democracia e do bem estar social nunca foi gerada por um excesso de liberdades democráticas ou pela luta pelo desenvolvimento econômico socialmente justo. Este sim o Consenso Universal, muito longe do Consenso de Washington, um blefe histórico e uma “carteirada" ideológica.

Tomara a sociedade brasileira possa acordar por inteiro
do pesadelo que quase nos levou ao caos. E prossigamos na rota descrita e acordada em nossa Constituição de 1988, que nos liberta de grilhões ideológicos e subservientes. E sobretudo de heróis e semi-deuses. Amém.
X
EM TEMPO: segundo os melhores meteorologistas, há um risco de “ O vento levou” repassar nos cinemas argentinos.
agbahadian@gmail.com"
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domingo, 27 de agosto de 2023

GETÚLIO VARGAS * DARCY RIBEIRO

GETÚLIO VARGAS
DARCY RIBEIRO

Getúlio Dornelles Vargas (São Borja, RS 1883-1954) foi o maior dos estadistas brasileiros. Foi também o mais amado pelo povo e o mais detestado pelas elites. Tinha de ser assim

Nasceu em 19 de abril de 1882, no interior do Rio Grande do Sul, no município de São Borja (fronteira com a Argentina), filho de Manuel do Nascimento Vargas e de Cândida Francisca Dornelles Vargas

Getúlio Dornelles Vargas (São Borja, RS 1883-1954) foi o maior dos estadistas brasileiros. Foi também o mais amado pelo povo e o mais detestado pelas elites. Tinha de ser assim. Getúlio obrigou nosso empresariado urbano de descendentes de senhores de escravos a reconhecer os direitos dos trabalhadores. Os politicões tradicionais, coniventes, senão autores da velha ordem, banidos por ele do cenário político, nunca o perdoaram.

Os intelectuais esquerdistas e os comunistas não se consolam de terem perdido para Getúlio a admiração e o apoio da classe operária. Com eles, o estamento gerencial das multinacionais. Getúlio foi o líder inconteste da Revolução de 1930. Tendo exercido antes importantes cargos, Getúlio pôde se pôr à frente do punhado de jovens gaúchos que, aliados a jovens oficiais do Exército, os tenentistas, desencadearam a Revolução de Trinta. A única que tivemos digna desse nome, pela profunda transformação social modernizadora que operou sobre o Brasil.

No plano político, a Revolução de 30, proscreveu do poder os coronéis-fazendeiros com seus currais eleitorais e destituiu os cartolas do pacto “café-com-leite”, que faziam da República uma coisa deles. Institucionalizou e profissionalizou o Exército, afastando-o das rebeliões e encerrando-o dentro dos quartéis.

No plano social, legalizou a luta de classes, vista até então como um caso de polícia. Organizou os trabalhadores urbanos em sindicatos estáveis, pró-governamentais, mas antipatronais.

O estadista Getúlio Vargas em visita a um orfanato – 1941 (CPDOC/Portal FGV)

No plano cultural, renovou a educação e dinamizou a cultura brasileira. Getúlio governou o Brasil durante 15 anos sob a legitimação revolucionária, foi deposto, retornou, pelo voto popular, para mais cinco anos de governo. Enfrentou os poderosos testas-de-ferro das empresas estrangeiras, que se opunham à criação da Petrobras e da Eletrobrás, e os venceu pelo suicídio, deixando uma carta-testamento, que é o mais alto e mais nobre documento político da história do Brasil.

Vejamos, por partes, os feitos de Getúlio. Logo após a vitória, estruturou o Governo Federal com seus companheiros de luta, como Oswaldo Aranha e Lindolfo Collor, aos quais se juntaram mais tarde Francisco Campos, Gustavo Capanema, Pedro Ernesto e outros. Colocou no governo, também, seus aliados militares, Juarez Távora, João Allberto, Estilac Leal, Juracy Magalhães, entregando a eles, na qualidade de interventores, o governo de vários estados e importantes funções civis. Só faltaram dois heróis do tenentismo: Luís Carlos Prestes, porque havia aderido, meses antes, ao marxismo soviético, e Siqueira Campos, que morreu em um acidente durante a conspiração.

O Governo Revolucionário criou o Ministério da Educação e Saúde, entregue a Chico Campos, fundou a Universidade do Brasil e regulamentou o ensino médio, em bases que duraram décadas. Criou, simultaneamente, o Ministério do Trabalho, entregue a Lindolfo Collor, que promulga, nos anos seguintes, a legislação trabalhista de base, unificada depois na CLT, até hoje vigente. O direito de sindicalizar-se e de fazer greve, o sindicato único e o imposto sindical que o manteria. As férias pagas. O salário mínimo. A indenização por tempo de serviço e a estabilidade no emprego. O sábado livre. A jornada de oito horas. Igualdade de salários para ambos os sexos etc.

Getúlio Vargas assina o decreto que institui o salário mínimo (Arquivo/CPDOC – Fundação Getúlio Vargas)

Getúlio inspirou-se, para tanto, no positivismo de Comte, que já orientava a política trabalhista dos gaúchos, do Uruguai e da Argentina. Oswaldo Aranha, à frente do Ministério da Fazenda, reorganizou as finanças, revalorizou a moeda nacional e negociou a velha e onerosa dívida externa com os ingleses, em bases favoráveis ao Brasil.

Guerra de ideologias. Dois anos depois da revolução vitoriosa, Getúlio enfrentou e venceu a contrarrevolução cartola, que estourou em São Paulo, defendendo a restauração da velha ordem em nome da democracia. Em 1934, convocou e instalou uma Assembleia Constituinte, que aprovou uma nova Constituição, inspirada na de Weimar. Com base nela, foi eleito Presidente Constitucional do Brasil. Getúlio teve de enfrentar, desde então, a projeção sobre o Brasil das ideologias que se digladiavam no mundo, preparando-se para se enfrentarem numa guerra total. De um lado, os fascistas de Mussolini, que se apoderaram da Itália, e os nazistas de Hitler, que reativaram a Alemanha, preparando-se para se espraiarem sobre o mundo. Do lado oposto, os comunistas, comandados desde a União Soviética, com iguais ambições. A direita se organizou aqui com o Partido Integralista, que cresceu e ganhou força nas classes médias, principalmente na jovem oficialidade das forças armadas.

Os comunistas começaram a atuar nos sindicatos, estendendo sua influência aos quartéis. Ampliaram rapidamente sua ação, por meio da Aliança Nacional Libertadora, que atraiu toda a esquerda democrática e antifascista. Os comunistas conseguiram de Moscou, que apoiava uma política de aliança com todos os antifascistas do mundo, que abrisse uma exceção para o Brasil, na crença de que aqui seria fácil conquistar o poder, em razão do imenso prestígio popular de Prestes.

O presidente do Brasil, Getúlio Vargas, e dos EUA, Franklin Roosevelt, a bordo do USS Humboldt, durante a Conferência do Rio Potenji, com Harry Hopkins, conselheiro de Roosevelt (à esquerda) e Jefferson Caffery, embaixador dos EUA no Brasil (à direita) – Wikipédia

Desencadearam a intentona, em 1935, que foi um desastre. Não só desarticulou e destroçou o Partido Comunista, como também provocou imensa onda de repressão sobre todos os democratas, com prisões, torturas, exílios e assassinatos. O resultado principal da quartelada foi fortalecer enormemente os integralistas, abrindo-lhes amplas áreas de apoio em muitas camadas da população, o que lhes permitiu realizar grandes manifestações públicas, marchas de camisas verdes, apelando para toda sorte de propaganda, a fim de eleger Plínio Salgado Presidente da República. Getúlio terminou por dissolver o Partido Integralista, assumindo, ele próprio, o papel de Chefe de um Estado Novo, de natureza autoritária. Quebrou o separatismo isolacionista dos estados, centralizando o poder e ensejando o sentido de brasilidade.

Em 1939, estalou a guerra. Todos supunham que a propensão de Getúlio era de apoio às potências do Eixo, em função da posição dos generais.

Surpreendentemente, Getúlio começou a aproximar-se da democracia, por intermédio de Oswaldo Aranha, que fez ver aos Aliados que Getúlio era propenso a apoiar as democracias. Não o fez de graça, porém. Exigiu dos Estados Unidos, como compensação pelo esforço de guerra que faria, cedendo bases em Belém e em Natal e fornecendo minério, borracha e outros gêneros, duas importantíssimas concessões. Primeiro, a criação de uma grande siderúrgica que viria a ser a Companhia Siderúrgica Nacional, a CSN, matriz de nossa industrialização.

Segundo, a devolução ao Brasil das reservas de ferro e manganês de Minas Gerais e da Estrada e Ferro Vitória-Minas, em poder dos ingleses. Com elas se constituiu a Companhia Vale do Rio Doce, que nas décadas seguintes teve um crescimento prodigioso. Toda essa negociação se coroou quando Getúlio consegue que Roosevelt viesse a Natal, em sua cadeira de rodas, para conversar com ele, consolidando aqueles acordos e obtendo do Brasil a remessa de uma força armada para a batalha da Itália.

Com a vitória dos Aliados na guerra, cresceu o movimento de redemocratização do Brasil, que logo se configurou como incompatível com a presença de Getúlio no governo. Ele tentou conduzir o processo e para isso criou, com a mão esquerda, o PTB, para dar voz política aos trabalhadores; e com a mão direita, o PSD, para expressar os potentados da administração pública, com os quais governara. Gerando desconfiança em todos, Getúlio finalmente caiu, em um golpe militar encabeçado por Góes Monteiro e Eurico Gaspar Dutra, seu Ministro da Guerra.

O governo foi entregue ao Supremo Tribunal Federal, que convocou e realizou eleições, nas quais se defrontaram, representando as forças nominalmente democráticas, o Brigadeiro Eduardo Gomes e, na vertente oposta, o general Gaspar Dutra. Ganhou Dutra, graças ao apoio de Getúlio, que vivia desterrado em sua fazenda de Itu, no Rio Grande do Sul. Simultaneamente, Getúlio se elegeu Senador por São Paulo e pelo Rio Grande do Sul, e Deputado Federal pelo Distrito Federal, pelo Rio de Janeiro, por Minas Gerais, Bahia e Paraná.

A volta de Getúlio Vargas à Presidência da República. (Reprodução/Google)

A volta. Nas eleições de 1950, Getúlio se candidatou à Presidência da República, enfrentando Eduardo Gomes, mas encontrou um estado destroçado e falido por Dutra, que, eleito por ele, governara com a direita udenista. Getúlio, logo depois de empossado, formulou nosso primeiro projeto de desenvolvimento nacional autônomo, através do capitalismo de estado e um programa de ampliação dos direitos dos trabalhadores.

Começou a lançar os olhos para a massa rural. A característica distintiva do seu governo foi, porém, o enfrentamento do capital estrangeiro, que ele acusava de espoliar o Brasil, fazendo com que recursos, aqui levantados em cruzeiros, produzissem dólares para o exterior, em remessas escandalosas de lucros. Toda a direita, associada a essas empresas estrangeiras e por ela financiada, entrou na conspiração, subsidiando a imprensa para criar um ambiente de animosidade contra Getúlio, cujo governo era apresentado como um “mar de lama”. Nesse ambiente, o assassinato de um major da Aeronáutica, que era guarda-costas de Carlos Lacerda, por um membro da guarda pessoal de Getúlio no Palácio do Catete, provocou uma onda de revolta, assumida passionalmente pela Aeronáutica na forma de uma comissão de inquérito, cujo objetivo era depor Getúlio.

A crise se instalou e progrediu até a última reunião ministerial, em que Getúlio constatou que todos os seus ministros, exceto Tancredo Neves, viam como solução a sua renúncia. Ele havia recebido, através de Leonel Brizola, a informação de que podia contar com as forças militares do sul do País. Mas, para tanto, seria necessário desencadear uma guerra civil. A solução de Getúlio foi seu suicídio. Antes, entregou a João Goulart a Carta testamento, que passou a ser o documento essencial da história brasileira contemporânea.

Virada. O efeito do suicídio de Getúlio foi uma revirada completa. A opinião pública, antes anestesiada pela campanha da imprensa, percebeu, de abrupto, que se tratava de um golpe contra os interesses nacionais e populares, que era a direita que estava assumindo o poder e que Getúlio fora vítima de uma vasta conspiração. Os testas-de-ferro das empresas estrangeiras e o partido direitista, que esperavam apossar-se do poder, entraram em pavor e refluíram. As forças armadas redefiniram sua posição, o que ensejou condições para a eleição de Juscelino Kubitscheck.

O translado do corpo de Getúlio, do Palácio do Catete até o Aeroporto Santos Dumont (foto abaixo) foi a maior, a mais chorosa e mais dramática manifestação pública que se viu no Brasil. Pode-se avaliar bem o pasmo e a revolta do povo brasileiro ante esta série de acontecimentos trágicos, que induziram seu líder maior ao suicídio como forma extrema de reverter a sequência política que daria fatalmente o poder à direita.
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GETÚLIO - FILME

O filme percorre a intimidade dos 19 últimos dias de vida de Getúlio Vargas, período em que ele fica isolado no palácio do Catete, enquanto seus opositores o acusam de ser o mandante do atentado da rua Tonelero contra o jornalista Carlos Lacerda. Os Últimos Dias de Getúlio teve seu lançamento ocorrido em 1 de maio de 2014, foi dirigido por João Jardim, escrito por George Moura e estrelado por Tony Ramos como Getúlio e Drica Moraes que interpretou Alzira Vargas, filha do ex-presidente. Ele suicidou-se em seu quarto, no Palácio do Catete, na cidade do Rio de Janeiro.

sábado, 26 de agosto de 2023

ROTEIRO DO GRITO DOS EXCLUÍDOS * Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.CNBB

ROTEIRO DO GRITO DOS EXCLUÍDOS

"A proposta do Grito dos Excluídos e Excluídas nasceu em uma reunião de avalição do processo da 2ª Semana Social Brasileia, promovida pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que aconteceu nos anos de 1993 e 1994. Surgiu como forma de dar continuidade e concretizar os debates e o tema da semana “Brasil, alternativas e protagonistas”, ou “O Brasil que a gente quer”. Assim como, inspirada no lema da Campanha da Fraternidade de 95, que tinha por tema “Fraternidade e Excluídos” e lema: “Eras tu, Senhor? ”

Entre as motivações que levaram à escolha do dia 7 de setembro para a realização do Grito estão a de fazer um contraponto ao Grito da Independência, proclamado por um príncipe, em 1822. Nesse sentido, desde 1995, o Grito dos Excluídos e Excluídas tem como objetivo levar às ruas e praças, os gritos ocultos e sufocados, silenciosos e silenciados, que emergem dos campos, porões e periferias da sociedade. Trata-se de revelar, à luz do dia e diante da opinião pública, as dores e sofrimentos que governos e autoridades tendem a varrer para debaixo do tapete. Trazer à superfície os males e correntes profundas que atormentam o dia-a-dia da população de baixa renda.

O primeiro Grito dos Excluídos e Excluídas foi realizado em 7 de setembro de 1995, tendo como lema “A vida em primeiro lugar”, e ecoou em 170 localidades. Em Aparecida/SP, aconteceu junto com a Romaria dos Trabalhadores e Trabalhadores, parceria que continua até hoje.

Já, em 1993, em Montes Claros/MG, havia acontecido o “Clamor dos Sem Teto”, posteriormente identificado como precursor do Grito dos Excluídos. A mobilização ocorreu após visitas às ocupações urbanas durante a Campanha da Fraternidade, daquele ano, que tinha o tema: Onde Moras? Como estava próximo ao 7 de setembro, foi feita uma parada cívica durante o desfile oficial, as famílias organizadas, os jovens e todos os simpatizantes àquela causa tomaram as ruas, com cartazes que manifestavam a indignação da situação em que se encontravam os moradores das favelas de Montes Claros.

A partir de 1996, o Grito dos Excluídos e Excluídas foi assumido pela CNBB que o aprovou em sua Assembleia Geral, como parte do PRNM (Projeto Rumo ao Novo Milênio - doc. 56 nº 129). Desde sempre, é um projeto vinculado à dimensão sócio transformadora da CNBB, localizado no Setor das Pastorais Sociais.

A cada ano, o Grito se efetiva como uma imensa construção coletiva, antes, durante e após o 7 de Setembro. Mais do que uma articulação, é um processo, é uma manifestação popular carregada de simbolismo, que integra pessoas, grupos, entidades, igrejas, pastorais e movimentos populares e sociais comprometidos com as causas dos excluídos e excluídas. Ele brota do chão, é ecumênico e vivido na prática das lutas populares por direitos.

A proposta não só questiona os padrões de independência do povo brasileiro, mas ajuda na reflexão para um Brasil que se quer cada vez melhor e mais justo para todos os cidadãos e cidadãs. Assim, é um espaço aberto para denúncias sobre as mais variadas formas de exclusão.

POR QUE O 7 DE SETEMBRO?

Desde 1995, o Grito dos Excluídos e Excluídas acontece no dia 7 de setembro, dia oficial da comemoração da independência do Brasil. Nada melhor do que esta data para refletir sobre a soberania nacional. Nesta perspectiva, o Grito se propõe a superar um patriotismo passivo em vista de uma cidadania ativa e de participação, colaborando na construção de uma nova sociedade, justa, solidária, plural e fraterna.

Nestes 29 anos de trajetória, o Grito faz um contraponto à história oficial da independência do Brasil. Na contramão dos desfiles cívicos e militares, que sempre marcaram o 7 de Setembro, conclama o povo, sobretudo os pobres e excluídos, a descerem das arquibancadas, deixar o patriotismo passivo, e ocupar praças e ruas na defesa de seus direitos.

Assim, o Dia da Pátria se tornou também em um dia de consciência política de luta por uma nova ordem nacional e mundial. O Grito mudou a cara do 7 de Setembro e da Semana da Pátria. Em todo o país, a cada ano, multiplicam-se manifestações e atividades, por meio de variadas formas de luta e linguagens: celebrações, atos, caminhadas, romarias, seminários, rodas de conversa, festivais, concursos de redação nas escolas, apresentações de música, teatro, dança, poesia, café na praça, programas de rádio, carros e bicicletas de som, lives.

DIA D DO GRITO

O Grito é um processo que compreende um tempo de preparação e pré-mobilização, seguido de compromissos concretos que dão continuidade às atividades. Por isso não se limita às ações do dia 07 de setembro, mas acontece antes, durante e depois de setembro. Esse processo de reflexão mobilizações é construído por meio de reuniões, lutas específicas do dia a dia, debates, formação de lideranças que ocorrem durante o ano todo e tem seu tempo mais forte no mês de setembro.

Nesse sentido, a partir de 2020, vem se ampliando também a realização do Dia D do Grito, uma decisão aprovada pelo conjunto dos articuladores e articuladoras, de todo o Brasil, que acontece nos dias 7 de cada mês, antes (pré-Gritos) e depois do 7 de Setembro. A atividade tem sido um espaço de reflexão e debate sobre variados temas sociais locais e nacionais.

MARCAS DO GRITO

A Criatividade, a Metodologia e o Protagonismo dos Excluídos são marcas do Grito, que privilegia a participação ampla, aberta e plural. Os mais diferentes atores e sujeitos sociais se unem numa causa comum, sem deixar de lado sua especificidade.

Criatividade/Ousadia

A cada ano, o Grito tem um lema nacional, que pode ser trabalhado regionalmente, a partir da conjuntura e da cultura locais. As manifestações são múltiplas e variadas, de acordo com a criatividade dos envolvidos: caminhadas, desfiles, celebrações especiais, romarias, atos públicos, procissões, pré-Gritos, cursos, seminários, palestras, rodas de conversa, concurso de redações, teatro, forrós, lives…

Metodologia

O Grito não começa e nem termina no 7 de Setembro, porque não é um evento, mas um processo de reflexão e construção coletiva, que se dá durante todo ano. Privilegia a participação ampla, aberta e plural.

Protagonismo dos Excluídos e Excluídas

É fundamental que os próprios excluídos e excluídas assumam a direção do Grito em todas as fases – preparação, realização e continuidade, o que ainda é um horizonte a ser alcançado.

ESTRUTURA ORGANIZATIVA

O Grito dos Excluídos e Excluídas conta com uma Coordenação Nacional, Secretaria Nacional, Coordenações locais e estaduais. O diferencial é a rede de articuladores e articuladoras e voluntários espalhados pelos rincões do Brasil, que ajudam a animar o processo de construção.

O Grito não tem personalidade jurídica própria, não tem sede própria, nem funcionários. O trabalho é desenvolvimento em parceria, o que representa uma de suas riquezas. A Secretaria Nacional funciona na sede do SPM – Serviço Pastoral dos Migrantes. Para efeitos de prestação de contas, uma das entidades que fazem parte da coordenação nacional responde como pessoa jurídica.

Hoje compõem a Coordenação Nacional: Comissão 8 da CNBB; as Pastorais e Organismos: PO (Pastoral Operária), SPM (Serviço Pastoral dos Migrantes), PPR (Pastoral do Povo da Rua), PCR (Pastoral Carcerária), PAB (Pastoral Afro Brasileira), CPT (Comissão Pastoral da Terra), PJ (Pastoral da Juventude), PJMP (Pastoral da Juventude do Meio Popular), CB (Cáritas Brasileira), CNLB (Conselho Nacional de Leigos e Leigas do Brasil), PMM (Pastoral da Mulher Marginalizada), CPP (Conselho Pastoral dos Pescadores). Entidades: CMP (Central dos Movimentos Populares), MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra), CNTE (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação), MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens), Jubileu Sul Brasil, Romaria dos Trabalhadores/as, JOC (Juventude Operária Católica), Rede Rua, Sefras (Serviço Franciscano de Assistência), CEBs, 6ª SSB (Semana Social Brasileira).

A coordenação é sempre um espaço aberto a entidades e movimentos que queiram comprometer-se com o Grito dos Excluídos e Excluídas.

SUGESTÕES DE COMO ORGANIZAR O GRITO

Garantir que os excluídos e excluídas tenham participação efetiva na organização, divulgação e realização do Grito, definição de local, formas de manifestação etc;

Onde ainda não há uma equipe coordenadora/animadora contribuir para sua criação;

Buscar as Pastorais Sociais, Movimentos Populares e Sociais e demais entidades para organizar uma equipe para coordenar, animar e dinamizar as Rodas de Conversa, os Pré-Grito, e o Grito nos bairros, cidades, dioceses, regiões;

Que cada pastoral, movimento e entidade participante assuma a proposta e a construção do Grito na sua agenda, motive e divulgue em seus veículos de comunicação;

Levar e discutir a proposta, o tema e o lema do Grito nas escolas, movimentos populares e sociais, sindicatos, associações, igrejas, ONGs, comunidades... Sempre buscando ampliar as parcerias;

Incentivar a realização de concursos de redação, gincanas, teatros, exposições de fotos, programas de rádio, festivais de música, poesia, dança... sobre o tema e lema do Grito;

Organizar cursos, palestras, seminários e debates, tendo como objetivo elevar o nível de consciência do povo, a partir do tema e lema do Grito;

Priorizar a linguagem simbólica, criativa e poética aos discursos;

Participar das lutas diárias como forma de melhor organizar e preparar o Grito dos Excluídos e Excluídas;

Que os Gritos ecoados nas ruas e praças se tornem pautas de reivindicações junto aos poderes locais...

(Texto: GRITO DOS EXCLUÍDOS
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domingo, 20 de agosto de 2023

CAPOEIRA ANGOLA E ANCESTRALIDADE * Mariana Lemos e Iolanda Depizzol/BRASIL DE FATO

CAPOEIRA ANGOLA E ANCESTRALIDADE


No extremo sul da cidade de São Paulo, no bairro do Grajaú, que registra a segunda maior população negra da metrópole, o grupo Semente do Jogo de Angola desenvolve há 33 anos a Capoeira de Angola, na linhagem do baiano Mestre Pastinha, sob a coordenação do também baiano Mestre Jogo de Dentro.

Alan Amaro dos Santos, contramestre do grupo na cidade de São Paulo, conta que o Semente do Jogo de Angola nasceu em 1990 realizando atividades nas periferias e na região central de Salvador (BA). Atualmente o grupo está presente nos estados da Bahia, São Paulo, Minas Gerais, Pernambuco e também em outros países como Costa Rica, Colômbia, Canadá, Nova Zelândia, Itália, Japão, França e Israel.

O contramestre compartilhou conosco um pouco dos conhecimentos ancestrais da capoeira vindos das diversas culturas do território africano e como ela foi se desenvolvendo no Brasil.

"A capoeira é afro-brasileira, enquanto essa manifestação que a gente conhece hoje. Mas ela se dá muito em função de outras manifestações africanas, de outros movimentos, de danças, de luta, de danças guerreiras que haviam na África e que se encontraram no Brasil, na condição das pessoas escravizadas. A capoeira aqui no Brasil se organiza enquanto forma de resistência física contra a escravidão. Era o recurso que o escravizado tinha pra lutar, pra se libertar, pra fugir, pra enfrentar o feitor ou quem fosse, mas também como forma de zelar uma memória daquilo que ele trazia consigo da África".

Para Alan, que dá aulas de capoeira no Grajaú há 15 anos e que há cinco é o contramestre do grupo Semente na cidade de São Paulo, a capoeira é, para além de tudo, uma filosofia de vida e não deve ser limitada a rótulos.

"Querer definir a capoeira como luta, como dança ou como arte é um pensamento muito europeu, é muito limitante. Eu entendo a capoeira como filosofia de vida. E assim ela é luta, tem um elemento que é a dança e também tem o elemento da arte, da cultura. Mas a capoeira é muito mais profunda do que isso. A partir do pensamento do Mestre Pastinha, a capoeira é uma forma de você buscar equilíbrio para sobreviver nessa sociedade que é opressora, que é machista, que é racista, que é fascista. E a capoeira surge como resistência a essa opressão. O Mestre Pastinha dizia que a capoeira é mandinga de escravo e ânsia por liberdade".

Simone Gomes da Silva, que conheceu a capoeira enquanto procurava um grupo para que seu filho pudesse participar das aulas, compõe o Semente do Jogo de Angola há 20 anos. Para ela a capoeira significa um encontro ancestral e um equilíbrio na vida.

"Quando a gente descobre a capoeira, a gente descobre também que ela é muita coisa. Ela traz um encontro pra mim mesma com meus antepassados, com a minha ancestralidade e hoje é a busca de quem eu sou, de onde eu venho, pra onde eu vou, do meu equilíbrio, do meu emocional, da minha mente, do meu corpo, da minha alma. Ela é um conjunto de tudo. Para mim, a capoeira é um complemento da minha vida. Eu não vivo sem ela".

Simone relatou que o grupo realiza semanalmente diversas atividades na sede situada no Grajaú, chamada Casa Cazuá.

Dentre as atividades estão os treinos de capoeira, as aulas de musicalidade e também os seminários formativos. Para ela, é muito importante que os capoeiristas aprendam a complexidade de todas as atividades, pois elas se complementam.

Durante a entrevista a capoeirista também fez questão de frisar a importância das mulheres serem praticantes da capoeira como uma forma de resistência e expressão.

"Foi difícil chegar até aqui. A capoeira vem de um movimento machista, e de um tempo pra cá ela foi se abrindo para as mulheres estarem se movimentando dentro dela. É uma forma de resistência, uma forma da gente se expressar, é uma forma da gente mostrar que a gente tá aqui também, que a gente pode, a gente consegue".

Desafios na valorização

Tanto para Alan quanto para Simone, um dos principais desafios atuais da capoeira no Brasil é o reconhecimento dos mestres e a valorização da prática.

O contramestre conta que são muitos os casos em que os mestres mais idosos chegam ao fim da vida sem nenhum reconhecimento, ao mesmo tempo em que são eles os principais responsáveis por manter viva e passar adiante a ancestralidade da capoeira.

"A gente tem grandes mestres da capoeira com um conhecimento gigantesco, que nesse mundo cada vez mais midiático e imediatista, são colocados de lado ou são usados por personalidades só pra tirar uma foto. Nem sempre eles tem espaço de fala, espaço pra poder passar o conteúdo que eles tem pra passar".

Mesmo reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Unesco e como Patrimônio Cultural Brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), durante a entrevista com o grupo Semente do Jogo de Angola, os desafios quanto a um real reconhecimento da capoeira ficaram muito nítidos.

Realizamos a gravação deste Mosaico Cultural no dia 3 de agosto, dia em que o estado de São Paulo reconhece como Dia do Capoeirista. Entretanto, nenhum dos capoeiristas do grupo sabia da existência da data comemorativa e muito menos o motivo pela escolha do dia 3 de agosto.

Ao ser perguntado sobre a importância desse reconhecimento, Alan critica e aponta algumas das contradições do sistema.

"Pra que serve o Dia do Capoeirista se os mestres estão aí, jogados à míngua? Que interesse o Estado tem em ter o Dia Nacional da Capoeira? Em ter o Dia Estadual da Capoeira? Que interesse o Estado teve, lá na década de 1930, de tirar a capoeira do Código Penal? Assim como que interesses ele tinha em colocar no Código Penal? O que eu vejo é que essas datas não nos representam na prática, não são reonhecimentos realmente positivos pra capoeira e pra nós enquanto capoeiristas".

Na visão de Alan, "o sistema se organiza para cooptar as manifestações culturais quando vê que não consegue vencer uma resistência cultural. Isso aconteceu com a música sertaneja, isso aconteceu com as manifestações populares como um todo e acontece também com a capoeira.

Ancestralidade viva

Mais do que um jogo, mais do que uma luta, mais do que uma dança, a Capoeira de Angola é olhar de mundo, é ancestralidade viva vinda da África e resistência que fortaleceu as lutas por liberdade no Brasil. A Capoeira de Angola é memória que resiste e que é passada de geração em geração em cada ação prática e tradição contada.

Nas palavras de Alan, a capoeira está vivendo um momento delicado hoje porque tem muita gente se apropriando dela neste lugar de querer aproveitar somente o seu lado estético, físico ou musical. Entretanto, ele reafirma a importância da essência que move os capoeiristas e que os diferencia e fortalece para resistir aos problemas sociais.

Para o contramestre, a capoeira precisa ser menos violenta e mais perigosa.

"A capoeira precisa ser menos violenta e mais perigosa. E quando eu digo isso é porque o perigo existe, a sociedade é perigosa e a gente precisa se preparar para o perigo. Os mestres mais velhos sempre falam que a capoeira é um mundo pequeno que prepara a gente para o grande mundo que é a vida. A gente, aqui, tem que se preparar pra lidar com o enfrentamento com a gente mesmo, com o enfrentamento com o outro, pra que quando a gente estiver no mundo maior, que é esse mundão louco que a gente vive, a gente tá mais plantado, a gente tá mais seguro, a gente tá preparado pra lidar com a violência policial, com a violência da própria comunidade, que já é oprimida e acaba respondendo com violência. A gente tem que tá preparado pra lidar com a vida e a capoeira ajuda a gente nisso".

Edição: Thalita Pires
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MESTRE PASTINHA REI DA CAPOEIRA
MESTRE PASTINHA
TVE BAHIA
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FONTE
Mariana Lemos e Iolanda Depizzol
BRASIL DE FATO

quinta-feira, 17 de agosto de 2023

PRIVADOAÇÃO DAS EMPRESAS ESTATAIS DE ENERGIA ELÉTRICA E OS APAGÕES * CEP MAGALHÃES - SP

PRIVADOAÇÃO DAS EMPRESAS ESTATAIS DE ENERGIA ELÉTRICA E OS APAGÕES


Até a privatização ou melhor, até a “privadoação” do sistema elétrico brazileiro, que começou com o FHC, na esfera federal, e com o Mário Covas em São Paulo, também continuado por Geraldo Alckmin, José Serra e toda tucanalha nos governos, o país tinha um dos melhores e mais confiáveis sistema elétrico do planeta. A geração, a transmissão e a distribuição da eletricidade nos estados, nos municípios, em qualquer lugar era feita de uma maneira correta e certeira. 


Por serem empresas estatais federais ou estaduais, o controle da qualidade do serviço prestado e das tarifas diferenciadas para cada tipo de consumidor, era muito rígido. O maior problema estava no fato das empresas serem estatais e não públicas. Numa empresa pública, não existe interferência político-partidária na administração e cargos de chefia da empresa. Ela tem um organograma próprio, mantendo uma saudável independência dos governos eleitos. Cargos e salários são da empresa e não dos governos. Uma empresa pública é do Estado, do país, jamais de um governo...


Numa empresa estatal, a ingerência dos partidos políticos, dos governos, sempre é grande e isso pode prejudicar um pouco a qualidade dos serviços. No caso brasileiro, apesar desta característica, a qualidade técnica sempre foi das melhores, visto que a ingerência político-partidária não conseguia interferir na prestação do serviço. Até o momento da privadoação, o país estava na eminência de ter unificado num sistema único toda a transmissão de energia elétrica. Vale dizer, nenhuma região ficaria sem eletricidade em caso de pane no sistema, de um apagão. Jamais foi concretizado o projeto em função da privadoação das empresas, onde a eletricidade, antes vista como um insumo ao progresso do país, passou a ser considerada como mais uma mercadoria. Quem paga, tem acesso. Quem não paga, fica sem. 


Como dizia Franklin Delano Roosevelt (1882-1945), o 32° presidente eleito dos EUA, no cargo por quatro mandatos (1933-1945), energia elétrica é um assunto muito sério e importante para um país, para ficar só nas mãos das empresas privadas. Quando assumiu a presidência, Roosevelt criou o "New Deal", uma política de intervenção do Estado na economia, no planejamento, na educação, nas infraestruturas, contrariando fortemente empresários e banqueiros americanos que ainda queriam independência total do governo nas questões financeiras e empresariais, mesmo durante a crise econômica provocada pela quebra de Wall Street, da bolsa de Nova York, em 1929. Para recuperar o país da grande depressão econômica, o "New Deal" representou uma real participação do governo federal em quase todas as instâncias da vida do povo americano. 


No quesito energia, criou a maior empresa estatal para atuar na bacia do rio Tennessee, a Tennessee Valley Authority (TVA), para regularizar o curso do rio, construir barragens hidrelétricas, eclusas para transporte fluvial, construção de vilas residenciais modernas, fiscalizar a construção de equipamentos domésticos etc. Foi uma "revolução" na economia e no setor energético, e essa empresa estatal existe até hoje, é a maior empresa estatal americana. 


O "New Deal" atuou em todos setores da economia, com ênfase nas infraestruturas do país, como estradas, equipamentos urbanos, água, saneamento etc. Era uma política de insumos para que as empresas privadas pudessem alavancar seu crescimento e assim gerar empregos, melhores salários e sair da crise. A TVA foi a inspiração para o Brasil de 1950, na elaboração dos projetos hidrelétricos federais, como no caso da CHESF (Companhia Hidrelétrica do São Francisco) para atender a demanda de eletricidade no Nordeste. 


Todas as outras empresas de energia elétrica estatais federais e estaduais, como FURNAS, CEMIG, CESP, COPEL etc. que surgiram durante as décadas de 1950, 1960 e meados de 1970, tiveram este viés. Produzir eletricidade para o crescimento da economia do país, eram considerados insumos necessários para que as empresas privadas e estatais pudessem existir, produzir, criando empregos e melhores salários para os trabalhadores.


A ótica das empresas privadas de energia elétrica está voltada apenas para o mercado, onde o principal objetivo é a obtenção de lucros para os acionistas. E para tanto, muita coisa foi destruída com as privatizações. Qualquer empresa prestadora de energia tem no serviço de manutenção dos equipamentos seu ponto mais sensível. Quando eram estatais, toda manutenção era feita de acordo com um planejamento para cada setor da empresa e para os equipamentos. As áreas de manutenção eram essenciais para o bom funcionamento. Depois de privadoadas, as áreas de manutenção foram desativadas, assim como as de treinamento. 


Tudo passou a ser terceirizado, custos foram cortados e as manutenções foram deixadas de lado e eram feitas apenas quando a necessidade era maior. O número de apagões, desde os de amplitude nacional, até aqueles que acontecem nas ruas ou bairros das cidades, cresceram muito nas últimas décadas. De maneira geral, os serviços pioraram e os custos das tarifas aumentaram. 


Os governos populares, tipo Lula e Dilma, não tiveram a coragem política de reestatizar o sistema elétrico nacional. Deixaram nas mãos das empresas privadas, inclusive o controle central, o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) - O Operador Nacional do Sistema Elétrico é uma entidade brasileira de direito privado sem fins lucrativos que é responsável pela coordenação e controle da operação das instalações de geração. Foi criado em 26 de agosto de 1998. Deixa bem claro que a responsabilidade do funcionamento de todo setor elétrico nacional, antes afeito ao governo, passou para o controle das empresas privadas. Elas mandam e desmandam...


O apagão que aconteceu em quase todo país, no dia 15 de agosto de 2023, deixou muitas dúvidas e suspeitas. Pode ter sido um acidente, talvez motivado pela falta de manutenção adequada, ou até um ato de sabotagem para justificar golpes em andamento, tirar do foco os roubos  das jóias e do relógio de ouro do genocida e seus militares de estimação. De qualquer forma, é um acontecimento muito ruim para o país e para o governo, o mesmo que reluta em enfrentar a direita fascista, golpista e mercenária que ameaça a todo instante a possibilidade do governo Lula dar certo. Talvez reestatizar a Eletrobrás fosse um caminho inicial para recuperar a confiabilidade e a qualidade dos serviços de energia elétrica prestados para o Nordeste. Com certeza, ajudaria e muito na reconstrução do país... 


CEP MAGALHÃES - SP

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Reestatizar a Eletrobras - Jair Galvão
Xadrez Político - Marco Zero