sexta-feira, 4 de agosto de 2023

HISTÓRIA, MEMÓRIA E PODER FEMININO EM POVOADOS AMAZÔNICOS * BENEDITA CELESTE DE MORAES PINTO/PA

HISTÓRIA, MEMÓRIA E PODER FEMININO EM POVOADOS AMAZÔNICOS
BENEDITA CELESTE DE MORAES PINTO

“O homem, também, conquistou o direito de sua
fragilidade pela força da mulher” (Ivo Pitanguy )

Resumo: baseado em fontes orais, mediante relatos orais e histórias de vida, e no cruzamento de documentos escritos disponível, o presente estudo trata das experiências históricas e das relações sociais de gênero em povoações remanescentes de antigos quilombolas na região do Tocantins, no Pará- norte da região Amazônica. Analisa, entre outras coisas, a ativa participação da mulher na constituição dos antigos redutos negros desta região, seu poder de liderança e os diferentes papéis desempenhados nos povoados remanescentes.

Palavras - chave: Memória, Poder Feminino, Quilombos, Amazônia

A historiografia brasileira sobre a escravidão pouco ressaltou o papel histórico das relações de gênero. Ao contrário dos Estados Unidos e Caribe - áreas escravistas de destaques - no Brasil são escassos os estudos que tratam especificamente da resistência da mulher escrava.1Entretanto, não só na África, como em todas as regiões das Américas negras, as mulheres africanas e suas descendentes crioulas marcaram presença com sua força e poder espiritual. Nas revoltas, nas insurreições, nas fugas, nos quilombos e nas outras formas de enfrentamento do cotidiano, a luta da mulher escrava, a despeito do silêncio da historiografia, nunca deixou de existir. Sem dúvida alguma, a mulher tinha um importante papel - digo até, que tinha um certo poder - na constituição e manutenção da comunidade escrava. Manejava, deste modo, diversas estratégias: enfrentamento, embates e rebeldia, modificando tanto as suas vidas como, as de seus familiares. De fato, contrariavam a idéia de "passividade" da mulher negra durante a escravidão. Seria possível afirmar que estava na manutenção da família uma das faces essenciais do poder da mulher escrava (Gomes 1995: 228 – 231).

No caso das fontes históricas a quase ausência de informações sobre a presença da mulher escrava nos quilombos do Brasil está se constituindo para mim numa interessante pista

∗Doutora em história Social, professora e pesquisadora da Universidade Federal do Pará e Coordenadora do Centro de Pesquisa do Campus Universitário do Tocantins - UFPA/Cametá. É líder dos grupos de Pesquisas Quilombolas e Mocambeira: história da resistência negra na Amazônia (GPQUIMOHRENA) e História, Educação e Linguagem na Região Amazônica (GPHELRA).

1 Dentre os poucos estudos, ver: DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e Poder em São Paulo no Século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1995; GIACOMINI, Sônia Maria. Mulher Escrava: uma introdução ao estudo da mulher negra no Brasil. Petrópolis - Rio de Janeiro: Vozes, 1988; e, MOTT, Maria Lúcia de Barros . Submissão e Resistência: a mulher na luta contra a escravidão. São Paulo: Contexto, 1988.

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metodológica. É sabido, que os quilombos possuíam várias estratégias de enfrentamentos. Sob condições de aparente inferioridade numérica e bélica, optavam, ao invés do embate direto com as tropas, pôr se refugiarem na floresta. Desse modo, protegiam seus familiares e a sua própria autonomia, formando seus mocambos em outras regiões.

Neste processo de resistência, a mulher desempenhava um papel de vital importância. Podia ajudar tanto na produção econômica como "administrar" em termos logísticos, materiais e culturais os próprios quilombos. Pois, estes eram ao mesmo tempo comunidades camponesas e unidades militares. Na manutenção material, no abastecimento de provisões, na confecção de roupas, de utensílios, no mundo espiritual e no mundo do trabalho, de forma geral, as mulheres foram muito importantes nas comunidades de quilombolas.

Na Microrregião de Cametá ou região do Tocantins,2no Pará- norte da Amazônia, emergem evidências de que a mulher negra desempenhou com força, coragem e desenvoltura o destino de quilombolas. Assumindo, entre outras tarefas, a própria chefia de quilombos e posteriormente de suas comunidades remanescentes. Como ocorreu com a negra Felipa Maria Aranha, que assumiu a liderança do quilombo do Mola ou Itapocu, localizado nas cabeceiras do Igarapé Itapocu, um braço do Rio Tocantins. O referido quilombo foi formado, na região, na segunda metade do século XVIII, constituído por mais de 300 negros, seus habitantes quilombolas, sob a responsabilidade desta mulher, viveram ali por vários anos sem serem "ameaçados" pelas forças legais. Felipa Maria Aranha deixou um legado de luta, improvisações e liderança para suas descendentes na Região do Tocantins.

Outra mulher, a negra Maria Luiza Piriá ou Pirisá, registrou sua passagem no quilombo do Mola organizando e liderando a Dança do Bambaê do Rosário3 e na administração da própria vida dos quilombolas que ali viveram. Juvita foi mais uma dessas mulheres que fizeram a sua própria história e de seus povoados. Ao sair do Quilombo do Mola ou Itapocu ela fundou o Povoado de Tomásia e liderou o mesmo por muitos anos. As Negras Leonor, Virgilina, Francisca, Maximiana e outras no quilombo do Paxibal, se embrenharam na mata para ajudar na sua constituição e ali faziam atividades, até então consideradas como afazeres só masculino, como: caçar, trabalhar na construção das improvisadas barracas de moradia - os tapiris cobertos e emparedados com palhas,

como Ubim e sororoca. Além de outras tarefas que praticavam no quilombo como, a plantação de

2 A Microrregião de Cametá ou Região do Tocantins é composta pelos seguintes municípios paraenses: Abaetetuba, Baião, Cametá, Igarapé-Miri, Limoeiro do Ajuru, Mocajuba e Oeiras do Pará.

3 O Bambaê do Rosário é uma prática cultural de caráter religioso, originária do quilombo do Mola ou Itapocu . Acontece por ocasião das festividades de Nossa Senhora do Rosário, mês de Outubro, na Vila de Juaba. Seus rituais se repetem durante nove noites consecutivas, e giram em torno da coroação, do acompanhamento e da descoroação do rei e rainha. PINTO, 1995)

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roças, coleta dos frutos do mato, pesca, marisco, fabricação de utensílios de barro, redes de dormir e roupas de fibra de curuanã e palha de palmeiras.

O presente estudo foi constituído com base nos relatos orais, na evocação da memória, que teima em reaparecer dos sótãos e quartinhos empoeirados e quase abandonados do passado, na fala trêmula com pausa e ofengância dos velhos e velhas, na maneira de sentar sem cerimônia, mas em reverência à própria vida, no gesto ritualístico de passar a rústica, calejada e pesada mão sobre o rosto num simbolismo de privacidade que despe até a alma, nas histórias de vida, nos utensílios feitos de barro e casca de pau cujo resíduos ainda se encontram nas taperas das lembranças.

Numa região, como a do Tocantins, onde são escassas as fontes documentais escritas sobre a escravidão e, principalmente sobre a figura da mulher, a História Oral tem sido útil, cúmplice e necessária na reconstituição de saberes, experiências, improvisações e lutas cotidianas vividas no âmbito de uma cultura onde a oralidade predomina. Dessa forma, os relatos orais, mediante a memória e as histórias de vida tornaram-se as fontes principais do presente estudo

Memória esta, que faz uma penosa viagem do pretérito para o presente em nome da cumplicidade, da confiança e da necessidade de se sentir vivo, capaz e sábio. A História Oral, segundo Alessandro Portelli, é como uma arte do indivíduo que leva ao reconhecimento não só da diferença, como também da igualdade. Na busca pela diferença, não podemos nos esquecer de que também acalentamos um sonho de compartilhar, de participar, de comunicar-nos e de dialogar. Nisso implica "o caráter dialógico da história oral, bem como seu trabalho de campo: a fim de sermos totalmente diferentes, precisamos ser verdadeiramente iguais se não formos totalmente verdadeiros". Ainda Portelli, "o trabalho de campo é, por necessidade, um experimento em igualdade, baseado na diferença" (PORTELLI, 1997: 17-19).

A tradição oral local tem revelado, através das histórias de vida de velhos e velhas, que as mulheres da Região do Tocantins ultrapassaram a idéia de "fragilidade" e "dependência", tornam-se personagens principais nos mitos de origem e na organização ritual, social e política dos povoados negros rurais da região. É com base na oralidade, através das memórias e no cruzamento da documentação disponível (Declaração de posse de terra, registros de termo de nascimentos e registros de termo de óbitos), que faço um estudo das experiências históricas e das relações sociais de gênero, analisando, entre outras coisas, a ativa participação das mulheres negras rurais em comunidades remanescentes de quilombos da região do Tocantins, destacando os diferentes papéis que elas desempenharam nos antigos quilombos desta região e depois nos povoados remanescentes, e quais os seus significados.

Na reconstituição da memória, minhas pesquisas nesta região têm como ferramenta principal as entrevistas com as pessoas mais velhas do povoado, homens e mulheres, os guardiões do tempo

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já vivido, da memória de sua ancestralidade. Longas horas de conversas afins ajudaram na reconstituição do mito de origem dos povoados - tanto dos antigos quilombos quanto dos povoados remanescentes- experiências cotidianas de seus habitantes, principalmente da figura feminina.

As mulheres aqui se forjam personagens de suas próprias histórias. Ultrapassam as barreiras ideológicas do silêncio da historiografia para provarem que são, igualmente, portadoras de poderes diante dos homens. Poderes nos mais diversificados âmbitos sociais, cuja simbologia procuro explicitar através deste estudo de relações de gênero4. Fracassa desse modo, a idéia de invisibilidade da mulher como sujeito histórico, uma vez que ela sempre se fez presente nos mais variados eventos da nossa história (SCOT, 1990). Embora a sua participação tenha sempre sido ignorada. A propósito, numa instigante busca pela figura feminina na historiografia brasileira, Maria Odila L. da Silva Dias, afirma que “o pressuposto de uma condição feminina, idealidade abstrata e universal, necessariamente a-histórica, empurra as mulheres de qualquer passado para espaços míticos sacralizados, onde exerceriam misteres apropriados, à margem dos fatos e ausentes da história” (DIAS, 1995:12). Dessa forma, Segundo Margareth Rago, todo "discurso sobre temas clássico, como abolição da escravatura, a imigração européia para o Brasil, a industrialização ou o movimento operário, evocava imagens da participação de homens robustos, brancos ou negros, jamais de mulheres capazes de merecerem uma melhor atenção" (RAGO, 1995: 81).

No entanto, seja de que forma for, desde a colonização brasileira, as mulheres acabam aparecendo na literatura, nos inventários, nas declarações de posse, nos processos, ou ainda nas confissões segredadas e silenciosas das páginas dos cadernos e livros de memórias. As consideradas ricas, têm seus nomes grafados nas páginas dos inventários, nos livros, com suas jóias e suas posses de terras; as mulheres negras escravas também têm os seus nomes ali registrados, embora apareçam como propriedade das ricas; as pobres livres, as lavadeiras, as doceiras, as costureiras, as rendeiras, as quebradeiras de coco, as parteiras, as quilombolas, as roceiras e outras tantas, são mulheres das quais pouco se sabe. Não deixaram nenhum bem após a morte, e "seus filhos não abriram inventário, nada falaram dos seus anseios, medos, angústias, pois eram analfabetas e tiveram, no seu dia-a-dia de trabalhar, de lutar pela sobrevivência" (FALCI, 1997: 242) .

Da vida dessas mulheres, suas histórias, lutas, experiências e saberes só emergem através do processo de esquadrinhamento e da reconstituição de uma memória quase que surda, bastante fragmentada, já quase esfacelada pelo tempo. Mas que teima em insurgir da surdez do passado para
(4 Nesse sentido, minha construção sobre a questão feminina nas comunidades rurais do Tocantins vem diferenciando-se da abordagem da antropóloga MOTTA-MAUES, na obra "Trabalhadeiras e Camarados" (1993) na Comunidade de Itapuá (Município de Vígia/Pa), onde, segundo a autora, a mulher possui um status de "inferioridade assumindo em relação ao homem uma posição de total dependência.")
o presente no exercício das lembranças e relembranças, e das histórias de vida de seus descendentes, como bem exemplificam as falas e as reminiscências.

Memória que faz ecoar dos escombros esquecidos da história os sons das cantigas em forma de murmúrio de negras fugitivas de quadris largos, canelas finas e longas, cabeleira amarrada com fibra de curuanã, envira, ou com um cipó qualquer tirado do mato. Que vagando nos caminhos de mata entre cipós e imensos troncos de acapuzeiros, seringueiras, maçarandubeiras, castanheiros, nos embrenhados da floresta amazônica ambientavam seus feitos entre os demais aquilombados, dirigindo, chefiando, defendendo, granjeando o sustento do dia-a-dia. Mulheres sábias, aprendizes da natureza, cujas lições eram as práticas de infusões, ungüento, e beberagem de folhas, cascas e raízes de pau para curar os males do corpo. São estes saberes, poderes, experiências, trabalhos, sofrimentos, modo de sobrevivência, e finalmente, suas lutas nos antigos quilombos do Tocantins, assim como de suas descendentes, que marcam o compasso de sua participação e constituição na história.

A historiografia das últimas décadas, segundo Maria Odila da Silva Dias, favorece uma história social das mulheres, pois vem se voltando para a memória de grupos marginalizados do poder. Novas abordagens e métodos adequados libertam aos poucos os historiadores de preconceitos atávicos e abrem espaço para uma história microssocial do quotidiano: a percepção de processos históricos diferentes, simultâneos, a relatividade das dimensões da história linear, de noções como progresso e evolução, dos limites de conhecimento possível diversificam os focos de atenção dos historiadores, antes restritos ao processo de acumulação de riqueza, do poder e a história política institucional (DIAS, 1995: 140).

A figura feminina, seus papéis e experiências fluem, portanto, através da evocação da memória, frutos de relações socio-culturais e históricas. A minha intenção, desde o momento inicial das pesquisas que venho desenvolvendo na região do Tocantins, não foi reconstituir as experiências históricas das mulheres dos antigos quilombos desta região, suas lutas e historicidade em oposição a figura masculina. Entendo que se assim o fizesse, estaria caindo na mesma cilada, da qual discordo, o discurso da vitimação, fragilidade e passividade da mulher. Estaria medindo força entre masculino versus feminino através, mais uma vez, da simples descrição da divisão formal dos papéis masculino e feminino.

A reconstrução histórica das relações de gênero, como afirma Marina Maluf, "recupera a importância dos papéis femininos com novos e diferenciados objetos de conhecimento que necessariamente interferem na construção de um saber histórico". E ainda mais,

"a história das mulheres não pode ser construída à margem da história oficial, mas em diálogo/ confronto com ela. Se de um lado seu registro abandona os temas padronizados da
experiência masculina e procura avivar a visibilidade das mulheres, de outro tem que considerar que a constituição do masculino e do feminino enquanto identidade de gênero é uma construção histórica que só ganha realidade se mostrada dentro de um sistema de relações que implicam dominação, tensão, resistência. Qualquer informação sobre a questão das mulheres, implica necessariamente, em informação sobre os homens" (MALUF, 1995: 19- 20).

As experiências históricas das mulheres da região tocantina nos seus povoados intercruzam se com aquelas da escravidão e dos quilombos. São mulheres que não se encontram nos "bastidores da história", pelo contrário, sempre demonstraram, através de suas estratégias e das experiências de suas ancestrais que foram sujeitos no processo histórico e nele executaram e executam papéis de destaque, quando se transformam em personagens capazes de construir tanto a história dos seus povoados como de sua própria existência. A própria tradição oral local vem revelando, através da memória, mulheres que desmentiram as idéias de "fragilidade," "submissão" e "dependência."

“Mulhé aqui no trabalho é macho. A senhora já viu o tamanho do paneiro de mandioca que elas carregam na costa? Pesa mais de cincoenta quilo. Elas trazem o paneiro na costa, o terçado na mão, a vasilha com água, e, se levá o filho zinho carrega e ainda vem bem assubiando!” [Dico Vilhena, 84 anos - Umarizal]

Nestes povoados o próprio discurso masculino evidencia a ausência da “fragilidade” e da “dependência” da mulher negra rural na região do Tocantins. A mulher ao deixar de ser “frágil”, adquire a força do homem, se equipara a ele e divide com ele o seu espaço. Porque é capaz de exercer atividades que envolvem força e vigor físico com naturalidade - como o macho -, sem no entanto deixar de ser feminina - mãe e mulher -, como afirma seu Dico Vilhena: “se levá o filho zinho carrega e ainda vem bem assubiando!” Acrescentando no trabalho cotidiano o poder e a força do macho no arremesso de peso e na vitalidade preestabelecida por ele mesmo. Qualidades que fazem delas personagens de destaques na vida dos seus povoado. Desde os antigos quilombos essas mulheres, por seus feitos, vão desfiando, como legado para aquelas que ultrapassem as suas gerações, teias tramadas em muito trabalho, solidariedade, experiências de luta, força para liderar e sobreviver.

A partir do mito de origem dos povoados remanescentes de quilombos, na Região do Tocantins, é possível reconstituir a importância local das relações de gênero. Vimos o caso de Maria Felipa Aranha, Luiza Piriá, Juvita, e, das negras Leonor, Virgilina, Maximiana, Francisca, e outras mulheres no antigo Quilombo do Paxibal, e posteriormente as mulheres de Umarizal, que em pé de igualdade com os homens construiam suas moradias, caçavam, pescavam (ainda pescam), faziam a coleta de castanha do Pará, os roçados de mandioca, a extração da borracha, do cipó de timbuí, da erva marapuama e da concha.

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O “poder” e o saber feminino, assim como, a sua luta pela sobrevivência, no Tocantins, são marcas visíveis delegadas por antigas quilombolas (suas ancestrais), as quais, através da reconstituição de suas memórias e de suas histórias fixaram normas de trabalhos não estabelecidas pelo sistema patriarcal. Sobre o qual, segundo escreveu Marisa Corrêa, “novas pesquisas indicam que a família patriarcal não pode ser vista como a única forma de organização familiar do Brasil colonial e sugerem que a colocação da figura do homem no centro de uma unidade doméstica, como regra, parece ser também uma ilusão” (CORRÊA, 1994: 34).

"Ah, minha querida, conheci muitas que caçavam. Olhe, a minha sogra caçava, a minha tia caçava, essa minha filha, que está aí, até hoje ainda caça; ela atira de espingarda, é boa de pontaria. Ela vai pra varrida, 5 vai pra espera de caça. Ás vezes ela vai com o marido, quando ele não está ela vai sozinha". [Ana Vieira Campelo, 76 anos, Umarizal]

É verdade, que a noção de trabalhos “leves” e “pesados”, afazeres masculinos e femininos também faz parte do discurso no povoado de Umarizal e em outros povoados negros rurais do Tocantins. Enquanto a mulher não se predispuser em mostrar o poder que se mantém velado, o qual só torna-se visível quando ela não obedece tal regra, corte os laços de submissão, que a liga ao outro gênero, ultrapasse o limite estabelecido pelo patriarcalismo. A partir daí evapora sua possível “fragilidade” e “dependência”, torna-se forte bastante, que as suas funções vão muito além de gerarem, parirem, criarem os filhos e executarem uma gama de trabalhos considerados “pesados”, feitos pelos homens. Na ausência do homem tornam-se chefes de casas, cuidando tanto da criação dos filhos e netos, como da manutenção de sua família mediante as feituras das roças de mandioca e posteriormente da fabricação e venda da farinha e demais atividades econômicas capazes de garantir o bem estar de sua família. Tornam-se fortes bastantes e adquirem poderes, a ponto de se transformarem em chefes de alguns povoados rurais.

Convivi e observei o cotidiano de muitas mulheres dos povoados negros rurais da região do Tocantins, dentre as quais destaco, como exemplo o caso da parteira Custódia, moradora do povoado de Umarizal, que através de sua memória reconstrói a trajetória da mulher negra rural, aquela que não vê limites para espécie alguma de trabalho. A demarcação da dependência da mulher está nos diversos ângulos em que se vê e vive. A mulher só é submissa se ela manifesta qualquer aceite para a submissão, quando se acomoda para que o homem reine. Porém, quando se

5 Uma espécie de caminho que se faz na mata. À tarde, esse caminho é muito bem varrido no qual caminha-se durante a noite a espera da caça, já que o caçador ou caçadora tem percepção do andar das caças entre as folhas; estas, por sua vez, não conseguem ouvir o barulho dos passos do caçador, pois ele caminha numa vereda varrida.

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desprende das sombras do “tutor”, exercida pelo pai ou companheiro, tal mulher é capaz de trilhar seus próprios caminhos, desempenhando papéis na vida e no plano sócio – econômico local, exercendo funções ora consideradas tarefas “só do sexo masculino”. No trabalho e na vida, as mulheres da região, desde suas ancestrais quilombolas, demonstraram exercerem importantes papéis políticos, econômicos e sociais.

“Eu tive dois filhos e não vivi com o pai deles, mas não diga a senhora que quando chegasse na hora de parí eu não tinha dinheiro pra dá alguma coisa pra parteira, pra comprá as coisas necessárias. Eu ia com a senhora: a senhora não tem roça pra capiná? Aí eu ia fazendo o trabalho e jutando o dinheirinho pra quando fosse preciso. Eu não ficava esperando de homem iguá certas mulheres. (...) Já depois de algum tempo que eu arrumei homem pra vivê comigo. Mas assim mesmo, eu nunca digo que dependi de homem, sempre fiz de tudo, rocei, cheguei a derribá, plantei, capinei, tirei concha, cortei siringa. Pra lhe dizer a verdade, que trabalho nunca teve cara pra mim, eu já fiz de tudo pra criá os meus filhos e, até hoje tô com essa idade, como a senhora vê, e ainda estou nessa luta” (Parteira Custódia Vieira, 73 anos, Povoado de Umarizal).

Sem tomar conhecimento de que alguns papéis são delegados, culturalmente definidos, como afazeres de mulher ou de homem, ou ainda, a noção de “leve” ou “pesado”. Pois, para elas “trabalho não tem cara e nem sexo, o que o homem faz a mulhê também faz”. Assim acabam tentando construir um novo espaço para a figura masculina, que tudo indica só agora quase no terceiro milênio começa a vislumbrar na sociedade. Nas falas de homens e mulheres das povoações negras rurais da região trabalhos e afazeres são executados por ambos os gêneros, são tarefas de homens e mulheres. Há uma relação de cumplicidade entre as figuras masculina e feminina: “é uma força unida na outra pra sobreviver”, como dizem. Tem razão Margareth Rago, em propor se “pensar as relações de gênero enquanto relação de poder, e nesse sentido, a dominação não se focaliza num ponto fixo, num ‘outro’, masculino, mas se constitui nos jogos relacionais de linguagem”. Ainda Rago,

“já não se trata de tematizar às mulheres ou ‘a condição feminina’, trabalhando com identidades, mas de integrar, nas análise, também os homens e pensar as relações entre os sexos e a construção das diferenças sexuais como produto culturais e não como natureza biológica.” (RAGO, 1995: 89-93)

Desde os primeiros habitantes do antigo quilombo de Paxibal, as mulheres do povoado de Umarizal, assim como as dos demais dos povoados negros rurais da região do Tocantins, tentam escapar dos laços de submissão masculina; elas estão em constante interação entre masculino e feminino. Sobressaindo-se pelas formas diversificadas de trabalho que executam, que em outros povoados rurais ou lugares podem ser considerados como “afazeres masculinos”. Fato que acaba por marcar uma certa visibilidade do poder feminino neste povoado. Em Umarizal a “mulher no
trabalho é macho”, porque tem a força do homem, faz todos os afazeres que o homem faz. A improvisação imposta pela vida, segundo escreveu Marina Maluf,
“embaralha as regras e confunde as normas. Uma coisa é o elenco de padrões, regras, interditos. Outra, bem diferente, é a experiência vivida improvisada e cotidiana da produção e reprodução da riqueza e da vida. A realidade herdada e ao mesmo tempo engendrada, por homens e mulheres coloca-os diante de necessidades que forçosamente obriga-os não só a se complementarem como também a intercambiarem papéis e experiências na construção de soluções Possíveis.” (MALUF, 1995: 252)

Nem mesmo com o “poder visível do macho” que, as mulheres de Umarizal vem conquistando, ao longo de sua historicidade, são capazes de escapar, em termos de estatística, das histórias de outras mulheres brasileiras, seja da zona urbana ou rural, onde o trabalho feminino desaparece, é invisível, contado apenas como atividades complementares ao trabalho masculino. O que, de certa forma, leva a exclusão da mulher dos benefícios conquistados pelo esforço do seu próprio trabalho, como, remuneração justa, assistência providenciaria de modo geral, proteção trabalhista e aposentadoria, direitos, estes, que são assegurados pela própria Constituição Brasileira.6

Sem ignorar essa realidade brasileira, é que as mulheres tanto de Umarizal, quanto de outros povoados remanescentes de quilombolas da região, reúnem-se em Associações para se organizarem e juntas reivindicarem os seus direitos de mulheres. Portanto, entendo que a idéia de submissão, fragilidade e dependência feminina torna-se complexa quando é vista a partir do contexto da vida cotidiana e nos espaços simbólicos de alguns povoados remanescente de quilombos. Interpretando todas as atividades desempenhadas pelas mulheres, as relações de gênero, é possível perceber, que ai residem densos significados políticos, econômicos, sociais e simbólicos de experiência, saber, força, individualização e poder. Nesse sentido, as ações dessas mulheres podem fazer “anjos” ou “demônios”, dependendo das circunstâncias e espaços em que são inseridas. Dessa forma, onde está a fragilidade e dependência feminina? Talvez, para alguns povoados negros rurais do Tocantins podemos encontrá-las na encruzilhada dos poderes invisíveis das mulheres negras rurais, quando estas, numa perspectiva de gênero, reconstroem, através de suas memórias, suas experiências, saberes e poderes, a sua historicidade.

6 O art. 5º da Constituição salienta que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à propriedade” e, no parágrafo I, se refere: “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta constituição”. Já o art. 7º estabelece que “são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que vise a melhoria de sua condição social” e mais especificamente no parágrafo xx assegura “proteção do mercado de trabalho da mulher mediante incentivos específicos, nos termos da lei”.

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BIBLIOGRAFIA

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MOTT, Maria Lúcia de Barros . Submissão e Resistência: a mulher na luta contra a escravidão. São Paulo: Contexto, 1988.

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PINTO, Benedita Celeste de Moraes. Memória, oralidade, danças, cantorias e rituais em um povoado Amazônico. Cametá: B. Celeste de M. Pinto. Editora, 2007.

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RAGO, Margareth. As mulheres na Historiografia Brasileira. In: Cultura histórica em debate. São Paulo: ed. Universidade Estadual Paulista, 1995

SCOT, Joan. "Gênero uma categoria útil de análises históricas", In: Revista Educação e Realidade. Porto Alegre, Vol. XVI n.º 2, julho- dezembro de 1990

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