ARAPONGAGEM COM VERBA PÚBLICA É MOLE
Inteligência militar manteve espião em partido político e o pagou pelo serviço após redemocratização.
Livro mostra que a Operação Pão de Açúcar consumiu cerca de R$ 1 milhão de verba secreta sem que nenhum dos quatro primeiros presidentes civis tivesse conhecimento da ação ou a autorizado.
O Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (CISA) manteve, durante dez anos de governos civis, uma operação secreta de espionagem tendo como alvo um partido político sem que quatro presidentes tivessem conhecimento do uso de verba secreta do órgão para pagar um espião na cúpula do PCB e, depois, do PPS (hoje Cidadania). A ação envolveu os governos de José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. O espião era Severino Teodoro de Mello, integrante do Comitê Central do PCB e da Executiva do PPS.
Tratava-se da Operação Pão de Açúcar, uma das mais importantes operações políticas de um serviço secreto. Já como PPS, o partido deu apoio ao governo Itamar Franco e ao de Fernando Henrique Cardoso. A ação demonstraria a autonomia do serviço secreto em relação ao Poder Civil e seu uso político, sem que houvesse fiscalização do Congresso ou prestação de contas da atividade de inteligência para autoridades civis, em uma espécie de atuação paralela que sobreviveu ao fim do regime militar.
Mello era controlado pelo oficial da Força Aérea Brasileira Antonio Pinto, o Doutor Pirilo. E recebia salário para fornecer informações sobre o funcionamento, o financiamento, as estratégias e os contatos políticos nacionais e internacionais da legenda. Cerca de 60 documentos inéditos produzidos por Pinto, os depoimentos do agente e do espião, fotos e até uma prestação de contas da operação fazem parte do livro Cachorros, a história do maior espião dos serviços secretos militares (ed. Alameda), que o Estadão reproduz.
Escola das Américas, em Forte Gullick, no Panamá, em 1967, a primeira turma de agentes da Aeronáutica faz um churrasco; da esq. p/ dir., coronel Francisco Renato Melo, brigadeiro Burnier, capitão Antônio Pinto e o futuro brigadeiro Sidney Obino Azambuja Foto: Acervo Pessoal / CISA
A vida dos dois principais personagens envolvidos na operação se confunde com a história política do país. Ao lado do futuro brigadeiro João Paulo Moreira Burnier, Pinto fez parte da primeira turma de oficiais da Aeronáutica que foi fazer curso de inteligência em Forte Gullick, no Panamá, onde funcionava a escola das Américas. Era 1967. O grupo fundou o CISA, onde Pinto trabalhou até 1995.
Mello era cabo do Exército em 1935 e participou do levante comunista no Recife. Preso, entrou para o partido em 1938. Nos anos 1940, foi responsável pela segurança do líder comunista Luiz Carlos Prestes. Nos anos 1950, cursou a Escola de Quadros em Moscou. Manteve relações com a segurança estatal soviética, a KGB. Nos anos 1960, passou a integrar o Comitê Central, participando da direção de legenda nos anos 1970 e 1980.
Foi durante a clandestinidade do regime militar que Mello foi cooptado pelos militares, depois de ter sido detido em São Paulo por agentes da Seção de Investigações do Destacamento de Operações e Informações (DOI), do 2.º Exército. Sua prisão foi confirmada por ele, em entrevista em seu apartamento, em Copacabana, no Rio, por três oficiais, dois sargentos, uma tenente e um investigador que trabalharam em órgãos de informações durante o regime militar.
Severino Theodoro de Mello em seu apartamento em Copacabana Foto: Marcelo Godoy/Estadão
Mello aceitou fazer um acordo com seus captores. Seria solto e os guiaria aos encontros que mantinha com outros integrantes da direção clandestina da agremiação no País. Com base nessas informações, uma dezena de dirigentes comunistas – a maioria integrantes do Comitê Central como Mello – foi sequestrada e assassinada em três centros diferentes clandestinos de tortura mantidos pelo CIE, entre 1974 e 1975.
Em 1975, Mello deixou o País escoltado por militares até Buenos Aires, onde fez contato com um representante do partido – Armando Ziller – que providenciou, com o consentimento do secretário-geral Luiz Carlos Prestes, documentos para que ele embarcasse para Paris e, depois, Moscou. No exílio, Mello continuou a manter contatos com os militares. Aproveitava, normalmente, as idas para a Europa Ocidental a fim de telefonar para seu primeiro controlador – o então capitão Ênio Pimentel da Silveira, o Doutor Ney.
Com a volta dos exilados em 1979 após a anistia durante a transição para a democracia, o Doutor Pirilo dispensou parte de seus informantes. Mas recebeu Mello das mãos do Doutor Ney, que repassou o informante para que o homem da Aeronáutica desse continuidade ao trabalho. É que o partido comunista continua ativo – ao contrário de outras organizações que atuaram contra a ditadura – e clandestino.
O PCB só seria legalizado por Sarney em 1985. Onze de seus integrantes haviam sido eleitos deputados pelo PMDB em 1982 e ajudaram a eleger Tancredo Neves presidente em 1984, na última votação indireta para presidente da República, quando o político mineiro derrotou o candidato da Arena, o ex-governador Paulo Maluf.
Mello tinha a obrigação de se encontrar com Pirilo. “Os únicos pontos pré-determinados eram após as reuniões do Comitê Central ou da Executiva do partido”, contou Pirilo. Segundo ele, para se tornar um informante era “preciso pedigree”. “E acesso.”
Quase todos os relatórios produzidos por Pinto com base nas informações de Mello levaram o carimbo “vedada a difusão”. Ou seja, nenhum outro órgão de inteligência , fosse, do Exército, da Marinha ou mesmo o antigo Serviço Nacional de Informações (SNI) ou a Secretaria de Assuntos Estratégicos, recebia cópias dos documentos. A razão disso está estampada em vários desses documentos: “para a proteção da fonte”.
Os encontros com Mello aconteciam em diversos lugares. Podia ser em um banco em frente ao Copacabana Palace, ao lado da praia, ou em uma sala do edifício Santos Vahlis, no centro do Rio. Ali o Centro de Informações do Exército mantinha uma sala. E o CISA pagou o aluguel de outra, conforme ficou registrado em uma prestação de contas da Operação Pão de Açúcar, de 1988.
Integrantes do Comitê Central do PCB, reunidos em Paris em setembro de 1979: Em cima, da esquerda para a direita: Luiz Tenório Lima, Giocondo Dias, Severino Theodoro de Mello, Gregório Bezerra, Salomão Malina, Lindolfo Silva, Agliberto Vieira de Azevedo, Almir Neves, Orestes Timbaúba. Sentados, na mesma direção: Hércules Corrêa, Givaldo Siqueira, Armênio Guedes e José Albuquerque Salles Foto: Arquivo Voz da Unidade
Naquele ano, Pinto listou que 27 integrantes do PCB haviam viajado por 46 países – boa parte do Bloco Socialista. A Executiva do PCB se reunira 11 vezes por 16 dias e o Comitê Central, duas vezes durante quatro dias. Pirilo encontrou-se naquele ano 21 vezes com Mello, o que permitiu ao agente produzir 39 documentos para seus chefes. Só com o aluguel da sala no Santos Vahlis, foram gastos o equivalente a R$ 33 mil.
O objetivo de Pinto era flagrar o financiamento ilegal do PCB, conseguir provas da subordinação do partido à União Soviética e, assim, conseguir forçar a cassação da legenda na Justiça Eleitoral, repetindo a manobra usada contra os comunistas em 1947, quando o registro do partido foi cassado porque seria um braço de uma potência estrangeira. Mello forneceu aos militares, então, detalhes dos negócios mantidos pela legenda no Leste Europeu, na África e suas relações com os soviéticos, inclusive com a KGB e com os cubanos.
Buscavam principalmente provas sobre o chamado ouro de Moscou, a ajuda financeira dada aos partidos comunistas pelos soviéticos em todo o mundo. No caso da sigla brasileira, a chamada “ajuda fraterna” giraria em torno de US$ 400 mil anuais. Roberto Freire, então deputado federal e mais tarde secretário-geral da legenda, nega até hoje a existência do “ouro de Moscou”. Ele tinha ciência de que os militares buscavam incessantemente uma prova sobre sua existência. “Até porque, se descobrissem, ia justificar a cassação dos comunistas, como agentes de Moscou.”
Trecho de relatório do CISA que trata de infiltração comunista no governo Sarney e que aponta para Luiz Fachin, futuro ministro do STF Foto: Reprodução/CISA
Mello também fornecia documentos e revelava bastidores políticos do partido e suas relações com o governo. Em 1986, o CISA chegou a produzir um documento em que tratava de suposta infiltração comunista no governo federal, onde listava entre os infiltrados o então advogado Luiz Edson Fachin, designado como procurador-chefe da assessoria jurídica do Ministério da Reforma e Desenvolvimento Agrário. Em 1987, Mello permitiu que Pinto, com o nome falso de Carlos Azambuja, publicasse no jornal do PCB, a Voz da Unidade, um artigo pouco antes do 8.º Congresso da legenda.
Por seu trabalho, Vinícius ganhava uma gratificação mensal paga com a verba secreta do CISA. Na memória de Mello, ela seria equivalente a R$ 100, em 1994, cerca de US$ 100. Pinto disse que era mais, mas não muito. O valor chegaria a US$ 200, cerca de US$ 400 atuais ou R$ 2 mil por mês. E assim foi até 1995, segundo o depoimento de ambos. Foi quando Pinto telefonou para Mello. Perguntou a ele se ele estava precisando do dinheiro. “Não tem importância. Para mim não tem importância”, respondeu Mello. “E aí parou a coisa.”
Em 15 anos, a Operação Pão de Açúcar consumiu cerca de R$ 1 milhão da verba secreta do CISA. Com base nas informações de Mello, Pinto estimava ter produzido mais de 300 documentos. Quando a ação acabou, fazia três anos que a maioria do PCB havia decidido deixar os símbolos e a ideologia comunista para trás, transformando o partido no PPS – atual Cidadania. A União Soviética já havia deixado de existir fazia quatro anos e o regime militar havia acabado fazia uma década. A única coisa que não havia mudado era a atuação paralela dos serviços secretos.
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