"Sem ódio. Sem rancor, mas com a firmeza de quem não se perde nas sutilezas dos meandros traçados pelas classes dominantes de ontem e de hoje. Que venhamos a ser respeitados pelos demais povos do mundo. Não podemos continuar sendo uma ilha isolada, mesmo em nossa pobre América Latina. Uma ilha de impunidade."
Antônio Pinheiro Salles, preso político por nove anos e torturado pela Ditadura Empresarial-Militar, em depoimento à Comissão Nacional da Verdade, publicado no livro Ninguém Pode se Calar.
Aos 60 anos do golpe, o Brasil carrega a mácula de não ter punido os agentes militares e civis responsáveis pelo financiamento e efetivação de graves violações de Direitos Humanos durante a Ditadura (1964-1988) e por seus atos preparatórios.
A cumplicidade das grandes corporações com o regime foi objeto de silêncio por muito tempo. O processo de resgate e construção da memória, sobretudo no âmbito das comissões da verdade, foi tardio e parcial; mas ele é a necessária ponta de um novelo que começa na aliança de militares com empresários para a articulação do golpe e se estende por mais de duas décadas de terrorismo de Estado, com um sistema repressivo projetado para a coerção dos trabalhadores, indígenas, quilombolas, camponeses, com vistas à maximização dos lucros das empresas, às custas da espoliação destes grupos.
Apesar das fartas provas da colaboração entre empresas e a Ditadura, até o momento apenas a Volkswagen do Brasil foi constrangida a assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) em razão da colaboração em crimes de lesa-humanidade. Hoje, outras 14 companhias são objeto de inquérito.
Nosso país, de uma forma geral, carece de uma cultura jurídica acerca da Justiça de Transição. Assim, juristas e ativistas vinculados historicamente à defesa da democracia e dos Direitos Humanos e sociais se unem no esforço de elaborar parâmetros teóricos e práticos, a fim de incidir sobre os inquéritos e futuros procedimentos judiciais ou extrajudiciais. Garantir a responsabilização das empresas e empresários cúmplices da Ditadura, bem como os processos de reparação completa, adequada, coletiva e efetiva, são o ponto-chave deste esforço.
Quebrar os parâmetros da impunidade corporativa pelos crimes do passado é uma tarefa de enorme relevância histórica e diz respeito a cada cidadão e cidadã. Em primeiro lugar, pela importância do passado, ao se construir coletivamente a memória política de um capítulo deplorável de nossa história. Mas também em relação ao futuro, para que se criem parâmetros legais que contribuam com a quebra de um ciclo de repetição do autoritarismo, que continuamente assombra o Brasil. A violência das polícias é realidade constante nos bairros pobres e favelas desde a Ditadura e, particularmente, com o povo negro.
Permanece um ranço antidemocrático em nossa sociedade, que tem na tutela militar o seu maior expoente, como as repetidas tentativas golpistas demonstraram, tal qual foram o 08 de janeiro de 2023 e os planos de assassinato de personalidades, inclusive do presidente da República, com vistas à insubordinação do poder militar contra a nossa frágil democracia.
Pela falta de apuração e condenação pelos crimes cometidos por empresas, predomina também na sociedade uma cultura que vigora até hoje, em que os casos mais perversos são normalizados e corriqueiros. Até hoje, os maus tratos, a discriminação, a vigilância, o controle e a submissão são naturalizados. Se houve um avanço democrático na sociedade após a Constituinte, ele não entrou nas fábricas, nas fazendas, nos locais de trabalho em geral.
O lançamento desta associação de ativistas, cujo objetivo é o apoio aos vitimados das empresas cúmplices da ditadura, é ancorada neste contexto. A partir da constituição de um corpo jurídico interessado no estudo e aplicação dos processos de reparação, esta associação deve se aproximar dos advogados e advogadas das entidades de vitimados e dar o suporte necessário aos diversos casos, por meio de atividades formativas, produção de materiais de subsídio e acompanhamento dos inquéritos hoje abertos pelo Ministério Público no caso das empresas cúmplices da Ditadura, bem como em futuros procedimentos judiciais ou extrajudiciais, nacional ou internacionalmente.
Para garantirmos o melhor acompanhamento dos inquéritos, é fundamental, após a formalização e constituição da associação, a sua habilitação nos inquéritos, em conjunto com as entidades de vitimados. Ao mesmo tempo, contribuiremos para que se criem ferramentas visando à autonomia das entidades de vitimados na defesa dos interesses dos seus representados, de forma que lhes seja garantido um processo de escuta amplo, qualificado e especializado, inclusive em espaços coletivos e deliberativos.
Essa associação também almeja atuar no apoio a pesquisas, que tenham como objetivos a revelação das graves violações de direitos cometidas pela cooperação das empresas com o regime militar e a busca por reparação. Concomitantemente, iremos incentivar e pautar a abertura dos arquivos das empresas, um passo fundamental para incentivar novas perspectivas à pesquisa histórica e, sobretudo, impulsionar as reivindicações por Memória, Verdade, Justiça e Reparação.
As empresas cúmplices da Ditadura estão espalhadas por todo o território brasileiro. São privadas, estatais, nacionais, multinacionais, localizadas em ambiente urbano e rural. Para garantir o efetivo acompanhamento dos casos das empresas que possuem inquérito civil em andamento, ou que possuem indícios, registros ou testemunhos de cooperação, esta associação apoia a articulação das entidades de vitimados com o Fórum por Verdade, Justiça e Reparação, que já atua em algumas regiões do país. O Fórum atua para contribuir com a coesão das iniciativas por Memória, Verdade, Justiça e Reparação no país no âmbito das empresas cúmplices da Ditadura, somando-se a todos os lutadores e lutadoras que historicamente se empenham para a reparação dos malfeitos cometidos. Esta é a defesa dos interesses e autonomia dos trabalhadores, sindicalistas, indígenas, quilombolas, camponeses, ribeirinhos, populações removidas, familiares de vitimados que foram vitimados pela articulação orgânica dos interesses dos empresários com os militares e agora reivindicam reparação coletiva às violações cometidas.
A apresentação pública de um estatuto é o próximo passo a ser dado para avançarmos na busca por reparação para a sociedade brasileira e especialmente para aqueles e aquelas que foram diretamente vitimados pela ganância autoritária das empresas em cumplicidade com os militares.
Seguir com Memória e Verdade!
Avançar com Justiça e Reparação!
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