DEPOIMENTO DE RITA LLE
Depoimento de RITA LEE sobre as mulheres. (texto de 2012)
Eu tinha 13 anos, em Fortaleza, quando ouvi gritos de pavor.
Vinham da vizinhança, da casa de Bete, mocinha linda, que usava tranças. Levei
apenas uma hora para saber o motivo. Bete fora acusada de não ser mais Virgem e
os irmãos a subjugavam em cima de sua estreita cama de solteira, para que o
médico da família lhe enfiasse a mão enluvada entre as pernas e decretasse se
tinha ou não o selo da honra. Como o lacre continuava lá, os pais respiraram,
mas a Bete nunca mais foi à janela, nunca mais dançou nos Bailes e acabou
fugindo para o Piauí, ninguém sabe como, nem com quem.
Eu tinha apenas 14 anos, quando Maria Lúcia tentou escapar,
saltando o muro alto do quintal da sua casa para se encontrar com o namorado.
Agarrada pelos cabelos e dominada, não conseguiu passar no exame ginecológico.
O laudo médico registrou vestígios himenais dilacerados, e os pais internaram a
pecadora no reformatório Bom Pastor, para se esquecer do mundo. Realmente,
esqueceu, morrendo tuberculosa.
Estes episódios marcaram para sempre a minha consciência e me
fizeram perguntar que poder é esse que a família e os homens têm sobre o corpo
das mulheres? Ontem, para mutilar, amordaçar, silenciar. Hoje, para manipular,
moldar, escravizar aos estereótipos. Todos vimos, na televisão, modelos torturados
por seguidas cirurgias plásticas. Transformaram seus seios em alegorias para
entrar na moda da peitaria robusta das norte americanas. Entupiram as nádegas
de silicone para se tornarem rebolativas e sensuais, garantindo bom sucesso nas
passarelas do samba. Substituíram os narizes, desviaram costas, mudaram o
traçado do dorso para se adaptarem à moda do momento e ficarem iirresistíveis
diante dos homens. E, com isso,Barbies de fancaria, provocaram em muitas outras
mulheres - as baixinhas, as gordas, as de óculos - um sentimento de perda de
auto-estima.
Isso exatamente no momento em que a maioria de estudantes
universitários (56%) é composto de moças. Em que mulheres se afirmam na
magistratura, na pesquisa científica, na política, no jornalismo. E, no momento
em que as pioneiras do feminismo passam a defender a teoria de que é preciso
feminilizar o mundo e torná-lo mais distante da barbárie mercantilista e mais
próximo do humanismo.
Por mim, acho que só as mulheres podem desarmar a sociedade. Até
porque elas são desarmadas pela própria natureza. Nascem sem pênis, sem poder
fálico da penetração e do estupro, tão bem representado por pistolas,
revólveres, flechas, espadas e punhais. Ninguém diz, de uma mulher, que ela é
de espadas.
Ninguém lhe dá, na primeira infância, um fuzil de plástico, como
fazem com os meninos, para fortalecer sua virilidade e violência. As mulheres
detestam o sangue, até mesmo porque têm que derramá-lo na menstruação ou no
parto. Odeiam as guerras, os exércitos regulares ou as gangues urbanas, porque
lhes tiram os filhos de sua convivência e os colocam na marginalidade, na
insegurança e na violência.
É preciso voltar os olhos para a população feminina como a grande
articuladora da paz. E para começar, queremos pregar o respeito ao corpo da
mulher. Respeito às suas pernas que têm varizes porque carregam latas d'água e
trouxas de roupa. Respeito aos seus seios que perderam a firmeza porque
amamentaram seus filhos ao longo dos anos. Respeito ao seu dorso que engrossou,
porque elas carregam o país nas costas.
São as mulheres que irão impor um adeus às armas, quando forem ouvidas e valorizadas e puderem fazer prevalecer a ternura de suas mentes e a doçura de seus corações.
Nem toda feiticeira é corcunda. Nem toda brasileira é só bunda.
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