sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Perigo Real e Imediato * Sergio Lessa / AL

 Perigo real e imediato

Prof Sergio Lessa / AL

(Professor da Universidade Federal de Alagoas)


Devemos iniciar esta newsletter com uma advertência. Em análises de conjuntura é mais frequente do que raro tomar-se o particular pelo universal e realizar inferências quanto ao futuro que serão negadas pela realidade. Às vezes, negadas em um espaço de tempo muito pequeno. Talvez o que se segue venha a ser negado pelo mundo real – contudo, não cremos que será assim. Como outras tantas vezes na vida, meu desejo é que eu esteja equivocado.

 

Tudo indica que o ano de 2020 marcou uma “virada”, um salto ontológico, no dizer de Lukács, na “crise estrutural do sistema do capital como um todo”, expressão típica de Mészáros.

 

Lembremos um pouco os antecedentes. A passagem da humanidade pela Revolução Industrial (1776-1830) possibilitou a superação da carência e a entrada da humanidade na era da abundância. Como já argumentamos tantas outras vezes, foi a abundância que colocou como uma necessidade e uma possibilidade históricas concretas, cotidianas, a superação do capital pelo comunismo. Em poucas palavras, a abundância fundou a contradição antagônica entre o pleno desenvolvimento das capacidades humanas em fazer sua história (concentrada nas forças produtivas) e o capital. Esta a razão, nem bem terminada a Revolução Industrial, já em 1822, de termos a primeira das crises cíclicas que marcariam a evolução do capitalismo até meados da década de 1970.

 

Foi com base na constatação desta contradição que as gerações de revolucionários após Marx e Engels (penso em especial nos anos de Lenin, Rosa Luxemburgo, Trotsky etc.) participaram das revoluções e tentaram iniciar a transição ao socialismo. Foi também com base na evolução nesta contradição que todas as revoluções não conseguiram abrir a superação do capital: a evolução do imperialismo concentrou a abundância em alguns poucos países e aprofundou a miséria no restante do mundo. Nos países capitalistas centrais, uma das consequências do imperialismo foi o desenvolvimento da colaboração de classe da aristocracia operária (representada pelos partidos e sindicatos de base operária) com a burguesia. Neste contexto, as explosões revolucionárias do século 20 ocorreram em países atrasados, nos quais a carência ainda existia e, portanto, em que a abundância imprescindível à superação do capital ainda não se fazia presente. Por vias muito diversas, as peculiaridades nacionais conduziram todas os novos governos revolucionários para o desenvolvimento das forças produtivas do capital, por vezes com enorme sucesso e acelerado desenvolvimento econômico, como na URSS sob Stálin ou na China atual.

 

Por esta via, chegamos ao final da II Grande Guerra (1939-1945) com uma economia mundial que promoveu um rapidíssimo desenvolvimento das forças produtivas do capital. Um desenvolvimento tão intensamente alienado que resultou em uma correspondente diminuição da capacidade da humanidade fazer, de modo não alienado, sua própria história. O capital expressou, então, mais nitidamente do que nunca, ser uma causa sui, isto é, uma potência cuja única peculiaridade é reproduzir a si próprio de modo ampliado, destruindo a humanidade neste processo. O Estado de Bem-estar, de um lado, e o “socialismo soviético” do outro, são as expressões melhor acabadas desta tendência.

 

O resultado foi a ampliação da abundância à escala planetária. O quanto se produziu no século 20 pode ser mensurado, a olhos vistos, pelo fato de que antes da I Grande Guerra (1914-18), os carros eram uma raridade e, ao final do século 20, o planeta se tornou motorizado. O que isto significou de aumento da produção siderúrgica, petroquímica (plástico incluso), de vidros, de energia de todas as ordens etc. é algo tão evidente que não requer maior argumentação. Some-se a isso o fato de que se empregou várias dezenas de vezes o que se gastou para motorizar o planeta na promoção das guerras e para o desenvolvimento do complexo industrial-militar.

 

Esse desenvolvimento da capacidade produtiva do capital conduziu à passagem das crises cíclicas à crise estrutural. Em poucas palavras, a abundância se tornou tão grande que mesmo a crise mundial que se iniciou em 1973-76 com a crise do petróleo foi incapaz de consumi-la. A abundância se tornou permanente. Não haveria mais, no futuro, os períodos de carência trazidos pelas crises que, no passado impulsionavam a acumulação do capital. Na precisa definição de Mészáros, a crise se transformou em uma continuidade em que a reprodução do capital apenas é possível pelo desenvolvimento de suas tecnologias e pelo desemprego crescente da força de trabalho. Esta equação (maior produção e menor mercado consumidor, devido ao desemprego) resulta, em escala planetária, no acionamento dos limites absolutos do sistema do capital como um todo. Isto é, a cada momento a crise se torna tão premente, tão próxima, que medidas emergenciais e excepcionais devem ser tomadas, com absoluta necessidade, para adiar a ruptura do sistema no seu todo.

 

Uma destas medidas é a de converter tudo o que for riqueza produzida pela natureza em mais-valia. A destruição do planeta, uma obra já vinha se dedicando há séculos, ganhou um novo ímpeto e uma nova qualidade. A capacidade produtiva atual é tão grande que processos da natureza que envolvem todo o planeta passam a ser alterados com uma rapidez e intensidade inéditas. Do aquecimento global à destruição dos solos, da homogeneidade genética que torna inevitável as epidemias entre humanos, entre animais e plantas; do esgotamento dos recursos não renováveis à acidificação dos oceanos que ameaça exterminar os peixes na próxima década devido à morte dos corais e do fitoplancton; da destruição das reservas aquíferas às toneladas de lixo produzidas a cada segundo: não há sequer um único e solitário aspecto em que possamos divisar uma tendência oposta, isto é, de o capital estar promovendo, ainda que pontualmente, uma produção de mais-valia que não seja destrutiva do planeta.

 

O perigo atual e imediato


Chegamos assim ao nosso presente. Pela racionalidade tresloucada do capital, a pandemia se tornou a válvula de escape que evitou, até o momento, a eclosão de uma recessão mundial que já era prevista desde 2018. As maciças injeções de capital (Binden, o novo presidente dos USA, fala em um novo pacote de 1,9 trilhões de dólares!) tornam o sistema econômico mundial cada vez mais instável. Pois são capitais fictícios, que apenas existem no circuito financeiro e que só possuem valor com a entrada de novos e cada vez maiores montantes do mesmo capital fictício. As pressões inflacionárias já se fazem sentir. Se as oportunidades de lucro trazidas pela pandemia ainda mantêm o sistema do capital girando, ainda que precariamente, nada indica que isso possa durar para sempre.

 

Ao lado deste crescente desequilíbrio econômico, a destruição do planeta ganha contornos de irreversibilidade: a calota polar norte já não tem mais salvação. Independentemente do que façamos, em poucos anos no verão não haverá mais gelo no Polo Norte. A tundra, vegetação da maior parte do norte do continente asiático, queima de forma irreversível. A presença de micropartículas de plástico nas células de todos os seres vivos, humanos inclusos, é algo irreversível, com consequências que apenas agora se começa a pesquisar. A acidificação dos oceanos, com a consequente destruição de corais e do fitoplancton, é irreversível no curto e no médio prazos. A destruição da cadeia alimentar oceânica é, igualmente, irreversível. E assim por diante, numa lista que poderia consumir todo o espaço desta Newsletter.

 

O perigo real e imediato é essa conjunção de uma reprodução do capital muito instável, que se confronta cotidianamente com seus “limites absolutos”, com uma destruição do planeta que se torna cada vez mais irreversível. A queda na produção de alimentos, a falta generalizada de água, epidemias cada vez mais intensas, associada a um colapso financeiro, podem conduzir o planeta novamente a um estágio de carência. Se uma tal involução da capacidade produtiva permanecer por um período mesmo curto de tempo, a possibilidade de se superar a sociedade de classes desaparece do cenário histórico. Sem abundância, a superação do capital é uma impossibilidade ontológica, deixa de ser sequer uma potência no sentido da dynamis aristotélica. A humanidade terá perdido, caso isto ocorra, a “janela histórica” para destruir o capital antes de ser por ele destruída. Socialismo não mais, barbárie se tivermos sorte: o planeta de fato pode se tornar inabitável aos humanos.

 

Nunca a Revolução esteve tão próxima

 

Vivemos momentos limites do sistema do capital. São estes os momentos nos quais as revoluções sempre aconteceram. Nunca os antagonismos se tornaram tão presentes e generalizados na ordem burguesa, como hoje ocorre. A totalidade do sistema está ameaçada e os indivíduos já não mais aguentam viver: a depressão e os suicídios crescentes não nos deixam mentir. Por todos os lados, em todos os aspectos da vida social, a necessidade pelo comunismo se faz cada dia mais atual. Contudo, os movimentos revolucionários não se intensificam. Por duas razões fundamentais. A primeira, as transformações da classe operária. A segunda, a inexistência de uma verdadeira esquerda, aquela que faça da luta pela destruição do capital sua razão cotidiana de existir, aquela que não é reformista.

 

A classe operária tem vivido, já por algumas décadas, uma realocação no planeta. A entrada da força de trabalho proletária dos países da periferia do sistema do capital, principalmente desde o início da crise estrutural (década de 1970), desmontou os centros industriais mais importantes nos países capitalistas avançados e gerou uma nova classe operária na periferia do sistema. Neste processo, nos centros operários tradicionais da Europa e dos EUA intensificou-se o predomínio político e ideológico da aristocracia operária, da burocracia sindical e partidária que dela se elevam. A capacidade de luta destes operários está fortemente reduzida. Nos países da América Latina, África, mas principalmente Ásia, surge a cada dia mais operários oriundos de uma massa camponesa miserável. Muitas vezes com um passado marcado pelo modo de produção asiático, esta massa encontra na brutal exploração pelo capital uma melhoria em suas miseráveis condições de vida e trabalho. Entre estes operários, as condições para um levante revolucionário têm se demonstrado. Assistimos a explosões sociais sucessivas (Argentina 2001, Chile, Bolívia, EUA etc. mais recentemente), mas elas não passado do patamar “economicista”, para ficar com o Lenin de O que fazer?.

 

Sem uma classe operária na liderança histórica na luta pela destruição do capital, ao lado das tendências presentes que ameaçam substituir a abundância pela carência, o perigo real e imediato é que a humanidade avance rapidamente, barbaramente, para sua destruição. Este o perigo real e imediato, ao qual a única alternativa é a revolução proletária que destrua o capital.

 

Nossa responsabilidade

 

Nenhuma situação histórica no passado colocou com tamanha urgência a necessidade da luta revolucionário pela destruição do capital. Nossa esquerda institucionalizada sequer consegue conceber esta necessidade, continua na senda suicida de buscar uma melhor administração do capital, ao invés de buscar destruí-lo. É uma esquerda que apenas enxerga a realidade pelo filtro do Estado e da propriedade privada: querem ser, eles, os administradores do capital. Querem ser, eles, os destruidores da humanidade. A classe operária, planeta afora, tem também demonstrado pequena capacidade de mobilização contra o capital.

 

Está nas mãos dos revolucionários a defesa e a propaganda da possibilidade de salvação da humanidade pelo comunismo. As explosões sociais tão mais frequentes nos últimos anos, a crise gigantesca dos EUA, a impossibilidade de qualquer distribuição de renda no contexto da crise estrutural: estas e outras tendências abrem possibilidades para a ação revolucionária que não existiam há poucos anos. Há que aproveitá-las, antes de tudo e em primeiro lugar, ampliando a produção de uma teoria revolucionária e sua divulgação pela sociedade. Há mecanismos para isso, sabemos como fazer do ponto de vista técnico-operativo. O que falta é a produção de ideias, a produção teórica. E esta é uma responsabilidade que apenas os revolucionários podem assumir.

 

Se a história mantiver uma continuidade, há uma possibilidade real à nossa frente: no passado, nos momentos em que o cotidianamente possível se converteu em desumanidades absolutas, foi quando a humanidade realizou feitos geniais, atos que converteram o impossível em possível. As revoluções acontecem, são fenômenos sociais característicos destes momentos limites da história. Ainda que a revolução proletária não esteja na ordem do dia, ela não desapareceu do horizonte histórico. Pelo contrário! As contradições nunca foram tão intensas e a revolução, desta perspectiva, nunca este tão próxima. O que é preciso é converter essa possibilidade em realidade: “sem teoria revolucionária não há movimento revolucionário”! Aqui nosso calcanhar de Aquiles, aqui devemos concentrar nossas forças.

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2 comentários:

  1. Um artigo, brilhante porém assustador, lendo-o chegamos à seguinte conclusão, ou a Revolução ou a extinção da Humanidade!

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  2. Nessa sociedade caótica, não vislumbro possibilidade imediata de uma revolução que destrua o capitalismo. As forças podem de equiparar num dado momento histórico, mas esse confronto não parece ser vitorioso para a humanidade. Infelizmente.

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O capitalismo está podre. Todos sabemos disso. Mas ele não cai sozinho