sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

NOTAS SOBRE A FOME * Helena Silvestre

NOTAS SOBRE A FOME

Notas sobre a Fome, de Helena Silvestre – é um daqueles livros que são necessários, segundo Lucia Tennina, autora do texto de orelha dessa obra. “A autora Helena Silvestre, como mulher, como militante, como favelada, como indígena, como negra, tinha de levantar a voz com este livro, pelos seus, pelos outros, por nosotras. Tinha de irromper na língua dos letrados para evidenciar seus violentos silêncios, mantendo as bases de um feminismo não branco, de um ‘feminismo inominável', como ela o nomeia, de um marxismo favelado, de uma cosmopolítica das particularidades e de uma genealogia da fome pensada não desde conceitos, mas sim desde a dor no estômago, desde a ira, desde a febre e, principalmente, desde os sonhos“. 

Segundo Lucia, é por meio da história de sua vida que a autora consegue montar uma máquina de pensamentos, não tomando a palavra desde uma narrativa genealógica e íntima, como costumam fazer pensadores letrados e bem alimentados, mas sim por meio de um relato corporal que parte da ira da fome e transita os ininteligíveis, a magia, as lágrimas, a vergonha, o amor, a dor, a vida, a morte, o animal, o vegetal, as leituras, as escutas, o tempo. “Vai assim armando conceitos-vivos que dialogam com uma atualizada teoria social que se revela branca e universalizante e, paralelamente, nos apresenta a história de uma menina que se tornou adulta muito cedo, quando aos 16 anos, durante os anos 2000, se lançou sozinha pela megalópole de São Paulo, deixando sua casa, sua favela ou, talvez, quando a flagraram lambuzando-se com uma sobremesa que não podia comprar no corredor de um supermercado.“ de acordo com a antropóloga feminista equatoriana Ana María Morales Troya, em texto de Apresentação, “o livro reflete as lutas e redes que coexistem com a ancestralidade e a miséria do capital; vemos que o bairro, a favela e a família (que não se restringe a parentesco) se formam a partir de circunstâncias alheias, incontroláveis, mas também a partir de empatia. 

Os laços humanos surgem em relações que são tecidas sem se renderem à violência e à morte impostas pelo capital, que procura destruir os vínculos e tecidos comunitários. Um helicóptero voa, é ouvido, e apesar dos gritos de dor pelo assassinato de um jovem, não pousa“. Ana María aponta que o livro mostra não apenas antigos pactos patriarcais e coloniais, mas também os pactos femininos ancestrais. Guerreiras e guerreiros que habitam os corpos e que ardem diante das ameaças contra a vida; as invocações, a bruxaria e os oráculos como aprendizagens incorporadas e habitadas como parte da resiliência; ainda que não vivam exclusivamente aí. O progresso e a esquerda não aparecem como uma derrota, mas como uma utopia que nunca convenceu um território real, nunca o libertou. 

As palavras de Helena mostram os desentendimentos da teoria com a realidade, com nitidez para se comunicar e entender; dialoga com o marxismo, sobre suas identificações e distâncias. Cada capítulo demonstra uma humanidade não homogeneizante, mutante com raízes que tecem a sua sobrevivência. E ainda sobre a compreensão dos feminismos, Ana María explica que “Helena fala sobre o feminismo, sobre como o incorporou em sua militância, sem diminuir as lutas de mulheres antecessoras que sustentaram a ela e a sua linhagem. Tecidos que refletem o que vive nos passados clandestinos, negados, que desumanizaram as mulheres indígenas e afrodescendentes; sobre isso, a autora se pergunta: como essa outra história de opressão entra e questiona o feminismo? Tem ela um lugar no “feminismo branco/ocidental”? Esta ‘história' aparece no livro por meio de narrativas pessoais e políticas da autora. 

Seu feminismo e sua militância são forjados pela resistência à apropriação colonial e capitalista que racializa e que tem argamassa patriarcal, destroços territoriais e pessoais“. Este livro não pretende, assim, ser um convite à leitura desinteressada. Segundo Ana María Morales Troya, o livro de Helena Silvestre “é uma provocação, uma intensa reflexão que não é categorizável, narrada por uma voz irreverente de mulher.”.

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