A ILHA DAS FLORES
Esta simples palavra da língua portuguesa é a lembrança na distância de marcas que a vida nos deixou.
No dia, 16, anteontem, pela manhã, passando o dedo no zap, dei com uma nota que me deu um choque! Como um raio caiu-me um texto falando das cinzas da companheira Marta Klagsbrunn. Não! Pensei. Não pode ser verdade! Mas, infelizmente, era!
Não posso falar do casal de companheiros Victor Hugo Klagsbrunn e Marta sem falar da prisão da Ilha das Flores, onde os conheci. Os dois muito jovens, em torno de 20 e 21 anos. Victor com um sorriso de menino travesso e Marta era a beleza, serenidade e alegria. Sempre rindo!
Embora presos, e em alas separadas, nós sentíamos emoção ao vê-las passar para o banho de sol. Elas mais do que nós, os homens, sentiam a humilhação e a perversidade dos torturadores. Pois todos os presos políticos, homens ou mulheres, eram interrogados nus. Muitas companheiras foram estupradas nas câmaras de torturas, durante a ditadura.
Naquela prisão tinha de tudo: da tortura, na Casa da Ponta dos Oitis, à resistência heroica dos presos políticos que não se dobravam.
O prédio da prisão tinha duas alas. Uma, na frente, voltada para a Baia de Guanabara e a outra, nos fundos, voltada para o bairro de Neves, em Niterói. Na ala da frente ficava a prisão das mulheres.
As presas políticas resistiam cantando canções com letras improvisadas e fazendo política com os guardas.
Os soldados da guarda conversavam muito com elas. E ouviam mais a elas do que aos homens, presos.
Eles ficavam impressionados ao verem mulheres jovens e cultas presas fazendo política. Política que, à época, era uma atividade exclusiva de homens. Mulher era para ser dona de casa, criar filhos!
Elas mandavam o discurso contra a ditadura, a miséria no Brasil e a terrível desigualdade em que vivíamos.
Eles ouviam e alguns acabaram aliados aos presos políticos. Levavam recados e davam informações sobre o que se passava em torno de tudo que nos interessava.
Entre as dezoito ou vinte companheiras presas, eu me lembro da Márcia Savaget, de Marijane Vieira Lisboa, Marta Klagsbrunn e Solange Santana. Estas eram as mais ativas.
Cheguei à Ilha em 18 de dezembro de 1969, à noite. E fui para uma cela dos presos incomunicáveis. Mas no dia seguinte passei a saber tudo o que estava se passando naquele presídio político.
O companheiro Rodrigo Farias Lima organizara uma produção de cinzeiros feitos de palitos de fósforos para arrecadar dinheiro e ajudar às famílias dos companheiros mais humildes. Depois passou a produzir cartões de Natal.
Isto tudo tem uma história dos presos políticos da Ilha das Flores e do espírito empreendedor e humanista do companheiro Rodrigo.
Na segunda quinzena de janeiro de 1970, chegou a notícia da “queda” da direção do PCBR e a morte de Mário Alves, na tortura, na PE da Rua Barão de Mesquita. Os companheiros Apolônio de Carvalho, Miguel Batista, Nicolau Abrantes, entre outros companheiros da direção, estavam sofrendo horrores, torturas cruéis.
A notícia veio por dois companheiros da Marinha que foram depor na Auditoria Militar e os advogados informaram.
Na prisão havia uma liderança muito firme e decidida, exercida por dois companheiros: Wilson do Nascimento Barbosa e Cláudio Torres da Silva.
Ao sabermos da notícia das quedas no PCBR e a morte trágica de Mário Alves, o companheiro Wilson avisou:
“Vamos prestar uma homenagem hoje à noite aos companheiros do PCBR. Quando der a última nota do toque de silêncio, vamos cantar a Internacional e dar vivas ao companheiro Mário Alves. Depois cairemos em sono profundo em todas as celas, em silêncio total. Ninguém dá um pio!”
Dito e feito! Quando o corneteiro deu a última nota do toque de silêncio o brado da Internacional irrompeu. Cantada em português, espanhol, portonhol e finalmente, um “Viva Mário Alves!!” E um “abaixo a ditadura!!” que não constava do script.
A sirene do Batalhão Paissandu berrou, quebrando o silêncio e a tropa se preparou para invadir a ala dos presos políticos.
Mas a montanha pariu um rato! Deu em nada!
Dali em diante, a relação entre os presos e a direção do presídio, que já era muito ruim, ficou péssima. Passamos a ser provocados a todo instante.
E por tão insuportável que a coisa se tornou, acabamos partindo para uma greve de fome. A primeira greve de fome de presos políticos no Brasil no pós 64, durou cerca de 8 dias, mas foi firme e decidida!
As mulheres não participaram da greve, pois já tinham sido enviadas para a prisão de mulheres em Bangu.
Antes das mulheres serem transferidas da Ilha, tínhamos o banho de sol pela manhã. Os presos e as presas iam, um grupo em seguida ao outro.
Mas um certo dia, ao terminar o banho de sol dos homens, a guarda mandou eles subirem para as celas, enquanto as presas desciam.
Naquela hora íamos passando bem ao lado delas, separados, apenas, por uma cerca viva de menos de um metro de altura.
A companheira Marta moderou o passo e quando o Vic foi passando, ela jogou os braços por cima da cerca e agarrou-o dando um beijo de chupão estridente na boca do companheiro Vic!
Os guardas surpreendidos e nervosos gritaram: “Para de galinhagem!” ao que uma das companheiras gritou: “Galinha é a sua mãe!”
O cabo da guarda berrou: “Acabou o banho de sol delas! Não tem mais banho de sol para as mulheres!”
E nós gritamos: “Já estamos em greve de fome, em solidariedade às companheiras!”
O oficial de dia, que não era capitão, veio correndo e desfez as ordens do cabo. E dando ordem falou: “Vai ter banho de sol para as presas, sim! E os presos vão para as celas!”
Não ouve “a greve do beijo” que o amor da companheira Marta Klagsbrunn pelo seu companheiro Victor Hugo provocara.
Foi bonito! Quantas saudades!
A inesquecível companheira Marta Klagsbrunn, com o seu sorriso, a sua alegria e o seu amor, pela causa que abraçamos, lutou a vida inteira por um mundo melhor, por uma sociedade mais justa!
Glória eterna à companheira MARTA KLAGSBRUNN!
E. Precílio Cavalcante, Ilha de Paquetá, 18 de novembro de 2021
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