DESCAMINHOS DA SEGURIDADE SOCIAL
A reforma da Previdência Social, apresentada por meio de Proposta de Emenda à Constituição (PEC nº 06/2019), tem como objetivo explícito, “além de reduzir o endividamento primário, combater a dívida pública pela redução do seu custo” (p. 43). O texto da PEC define ainda que os pilares da reforma são o combate às fraudes e a redução da judicialização, a fim de eliminar o recebimento de benefícios indevidos, e o fortalecimento do processo de cobrança da dívida ativa da União, em especial das contribuições previdenciárias. Contudo, partiu-se do pressuposto de que essas medidas seriam insuficientes para solucionar o déficit da Previdência Social.
Propôs-se, então, uma série de mudanças na Constituição Federal que visam à redução do gasto por meio da imposição de critérios mais rígidos para o acesso à Previdência Social e por meio da redução do valor dos benefícios previdenciários e do Benefício de Prestação Continuada (BPC) da Assistência Social, com impacto negativo na aposentadoria de trabalhadores e na vida dos brasileiros. Entre as alterações propostas que dificultam o acesso à Previdência Social, estão o aumento do tempo mínimo de contribuição, com vistas à aposentadoria, de 15 para 20 anos e a extensão dessa exigência para trabalhadores rurais; e a redução de dois para um salário mínimo de salário médio recebido no ano anterior como critério de elegibilidade para recebimento do abono salarial. Além disso, a proposta previa um novo regime de Previdência Social, baseado na capitalização, em substituição ao atual regime de repartição. Com essa proposta, o objetivo era economizar R$ 1,16 trilhão em dez anos, conforme dados do Ministério da Economia[1].
A tramitação da PEC nº 06/2019 na Câmara dos Deputados, principalmente a discussão na Comissão Especial e a votação dos destaques apresentados por deputados ao texto-base no Plenário, resultaram no abrandamento das novas regras, mas ainda indicando potencial ameaça à proteção social. A seguir, são apresentadas as principais alterações em relação à proposta original.
A previsão de um novo sistema de capitalização foi excluída da proposta – mas ainda não está descartada, tendo em vista anúncio de que o governo enviará ao Congresso uma PEC separada relativa ao tema (https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/08/10/governo-enviara-pec-a-camara-com-proposta-de-capitalizacao-na-previdencia-afirma-onyx.ghtml). Assim, o atual sistema de repartição, por ora, permanece, o que contribui para o financiamento solidário do sistema e para a redistribuição de renda de maneira horizontal e vertical. Na horizontal, os ativos transferem renda para os inativos; na vertical, aqueles com maior renda contribuem mais, transferindo recursos para aqueles com menor renda (Mesa-Lago, 2006[2]).
O impacto da reforma na cobertura da população mais vulnerável pelo sistema de Seguridade Social foi amenizado a partir da manutenção das regras atuais quanto ao valor e critério de idade (a partir de 65 anos de idade) do Benefício de Prestação Continuada e quanto a exigência de tempo de contribuição para os trabalhadores rurais. Em relação aos trabalhadores rurais, permanece na Constituição Federal, portanto, a figura do segurado especial (parágrafo 8º, Art. 195) como “o produtor, o parceiro, o meeiro e o arrendatário rurais e o pescador artesanal, bem como os respectivos cônjuges, que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, sem empregados permanentes”, cuja contribuição previdenciária não é obrigatória. Para acesso à aposentadoria ou qualquer outro benefício previdenciário, o segurado especial precisa comprovar o exercício de atividade rural.
Outra alteração que reduziu o impacto da reforma na cobertura da população com menor renda foi o aumento do critério de renda para acesso ao abono salarial, de salário médio de até um salário mínimo no ano anterior para R$ 1.364,43, adotando o mesmo critério utilizado atualmente para a concessão do auxílio-reclusão. Cálculos realizados pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) indicam[EBC1] que, com esse novo parâmetro, cerca de 46% trabalhadores ainda terão direito ao abono salarial[3], em contraposição aos cerca de 11% apontados no estudo do Instituto Fiscal Independente[4], caso o critério fosse reduzido para até um salário mínimo. Contudo, ao desvincular o critério de elegibilidade ao abono salarial do salário mínimo, esse valor deverá ser reajustado pelos índices aplicáveis aos demais benefícios previdenciários, que têm sido inferiores aos aplicados ao salário mínimo nos últimos anos. No médio prazo, a cobertura desse benefício tenderá a reduzir.
As mudanças amenizaram o impacto na previdência para as mulheres. O texto aprovado na Câmara e enviado ao Senado manteve as regras atuais quanto aos 15 anos exigidos de tempo de contribuição para aposentadoria, e reviu as regras de cálculo do benefício. Com 15 anos de contribuição, a mulher garantirá 60% da média de todas as contribuições, com adicional de dois pontos percentuais por ano de contribuição adicional, garantindo aposentadoria integral com 35 anos de contribuição. A idade mínima de 62 anos para aposentadoria da proposta original não foi alterada. É necessário ainda, contudo, analisar as regras propostas com base nas desigualdades de gênero presentes no mercado de trabalho: as mulheres apresentam menores taxa de participação e maiores taxas de desemprego. E, quando empregadas, as mulheres possuem menor jornada de trabalho, inserção mais precária e remuneração menor[5].
Embora não haja impacto na cobertura previdenciária de homens e mulheres de imediato, ambos terão garantidos valores de benefícios inferiores aos das regras atuais, pois um novo método de cálculo do valor das aposentadorias foi aprovado
É preciso avaliar se essas condições para a aposentadoria permitem garantir segurança de renda para as mulheres. Quanto às regras de aposentadoria para os homens, pouco foi alterado. A idade mínima de 65 anos e o tempo de contribuição de 20 anos permaneceram na proposta. Criou-se apenas uma nova regra de transição: serão exigidos apenas 15 anos de contribuição daqueles que já forem segurados da previdência antes das novas regras serem sancionadas.
Assim, embora não haja impacto na cobertura previdenciária de homens e mulheres de imediato, ambos terão garantidos valores de benefícios inferiores aos das regras atuais, pois um novo método de cálculo do valor das aposentadorias foi aprovado. As novas regras reduzem o valor de base utilizado para definir o benefício, ao incorporar no cálculo 100% dos salários de contribuição, deixando de desconsiderar os menores salários (20%), conforme procedimento atual. Além disso, o valor da aposentadoria partirá de 60% do valor de base (nas regras atuais, esse percentual é de 70%) e exigirá 40 anos de contribuição para os homens e 35 anos para as mulheres, para obtenção do benefício integral (contra os 30 anos exigidos na legislação vigente). O valor da aposentadoria é reduzido em seu valor de base e ainda exige maior tempo de contribuição para garantir esse valor integral. Considerando os dados do Anuário de Estatística da Previdência Social de 2014, cerca de 40% dos benefícios concedidos naquele ano foram devidos a contribuintes com 30 anos ou mais de contribuição, o que lhes garantiu aposentadoria integral. Pelas novas regras, somente 2,6% dos homens e 0,9% das mulheres que tiveram benefícios concedidos naquele ano receberiam valor integral[6].
A alteração nas fórmulas de cálculo dos benefícios pode vir a ferir o princípio da suficiência das prestações, que estabelece que as prestações da Seguridade Social devem ser suficientes para assegurar condições mínimas para subsistência
De forma semelhante, os benefícios de aposentadorias por invalidez e pensões por morte, cujo cálculo do valor de base consideram atualmente 100% do valor dos salários de contribuição ou do valor base para aposentadoria, respectivamente, serão reduzidos. Nas regras propostas, para as aposentadorias por invalidez, esse valor será de 60% da média de contribuições, acrescido de dois pontos percentuais por ano de contribuição que exceder 20 anos. Para as pensões por morte, será de 50%, com acréscimo de 10% por dependente, podendo ser inferior ao salário mínimo.
A alteração nas fórmulas de cálculo dos benefícios pode vir a ferir o princípio da suficiência das prestações, que estabelece que as prestações da Seguridade Social devem ser suficientes para assegurar condições mínimas para subsistência. Os valores médios dos benefícios ativos em 2017 já eram relativamente baixos (aposentadoria: R$ 1.441,65; aposentadoria por invalidez: R$ 1.366,92; pensões por morte: R$ 1.291,37), e 75,0% das aposentadorias concedidas nesse mesmo ano eram iguais ou inferiores a dois salários mínimos[7]. Em contexto de recessão econômica e de altas de taxas[EBC2] de desemprego, reduzir o valor desses benefícios pode contribuir para o aumento da pobreza e das desigualdades no Brasil nos próximos anos.
Na proposta original, o único ponto que visava a recuperação de arrecadação para a Previdência Social era a inclusão de um inciso que vedava o favorecimento de contribuintes, sejam empregados ou trabalhadores, por meio da concessão de isenção, da redução de alíquota ou de base de cálculo das contribuições sociais. Essa medida poderia acabar com a não incidência de contribuições sociais sobre as receitas decorrentes de exportação, estabelecida pela Emenda Constitucional 33/2001, o que afetaria principalmente os empresários do agronegócio. Segundo a Receita Federal (2018[8]), a estimativa de gastos tributários projetados para 2019 provenientes de renúncias de contribuições sociais originárias dessa imunidade do segmento exportador é de aproximadamente R$ 7,3 bilhões. Mas esse ponto foi excluído a partir de um destaque votado no Plenário da Câmara no primeiro turno da votação. Em contrapartida, foi aprovado o aumento da arrecadação com aumento da alíquota da contribuição, de 15% para 20%, na Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) para bancos de médio e grande porte. Mas não há garantias de que esse ponto seja mantido pelo Senado.
Redução dos gastos não é a única solução para a Previdência Social
Fica evidente na proposta original da Reforma da Previdência e nas alterações realizadas em seu trâmite na Câmara dos Deputados que a forma de se resolver o déficit enfatizada pelo atual governo é a redução dos gastos. O resultante, após as alterações aprovadas pelos deputados federais, indica que os esforços foram apenas no sentido de amenizar impactos na redução do acesso à seguridade social e dos valores dos benefícios previdenciários. Embora tenha se discutido em sessões da Comissão Especial sobre os problemas de financiamento do sistema[9], apenas 2% da “economia prevista” de R$ 933,5 bilhões em 10 anos será proveniente do aumento da arrecadação, referentes ao aumento na alíquota da CLSS[10].
Uma análise realizada pela Secretaria de Previdência do Ministério da Economia[11] apresenta resultados previdenciários do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), em valores reais acumulados entre 2009 e 2018. No subsistema urbano, a arrecadação líquida foi maior que a despesa com benefícios, entre 2009 e 2015, apresentando déficit somente a partir de 2016. Em 2018, o déficit atingiu R$ 81,4 bilhões em valores nominais. Já no subsistema rural do RGPS, o resultado previdenciário é deficitário desde 2009, primeiro ano analisado, atingindo R$ 113,8 bilhões em 2018. Esse desequilíbrio do subsistema rural foi coberto pelo superávit do subsistema urbano na maioria dos anos analisados, o que demonstra a solidariedade entre cidade e campo existente no regime geral de repartição[12].
Além disso, o superávit apresentado pelo subsistema urbano de 2009 a 2015 pode ser explicado, em parte, pelo crescimento econômico e maior formalização da força de trabalho nesse período. Gentil e cols. (2017[13]), realizaram simulações em um modelo simplificado que mostram que o crescimento da produtividade e da formalização do trabalho, associado a medidas que aumentem as receitas previdenciárias (revisão das desonerações tributárias, redução das desvinculações de recursos, recuperação de créditos da Previdência), pode ampliar a disponibilidade de recursos para financiar os benefícios previdenciários, com consequente resultado financeiro positivo no curto e no longo prazo. Os autores defendem que o crescimento da produtividade poderia ser estimulado por um conjunto de medidas, como a combinação de mecanismos de política industrial horizontal (gastos em infraestrutura, educação, treinamento, estímulos à P&D) e vertical (estímulos a atividades, processos, segmentos, cadeias e setores produtivos com elevada capacidade para gerar e difundir ganhos de produtividade para o restante da economia), o que resultaria em crescimento econômico e geração de empregos formais. Para a formalização do trabalho, são citadas ainda a importância de políticas de qualificação da mão de obra, de estímulo à criação de novos empregos e de incentivo à participação da mulher na força de trabalho (implantação de creches e escolas públicas em tempo integral).
Por que esses fatores foram desconsiderados no momento das discussões. Quais são as propostas para induzir o crescimento econômico, aumentar a formalização da força de trabalho e reduzir o desemprego? Por que não foram consideradas formas alternativas de financiamento, dada a atual proposta de reforma tributária e fiscal? Por que não se considerou revisar as renúncias fiscais já implementadas atualmente? Por que insistir na estratégia de reduzir o déficit da Previdência Social a partir da redução dos gastos, com impacto direto principalmente na população de menor renda?
Uma outra estratégia para resolver os problemas de financiamento da Previdência Social poderia abranger medidas para evitar a perda de receitas da Seguridade Social, previstas na Constituição Federal, conforme apontado pela Anfip (2017[14]), como extinguir a Desvinculação das Receitas da União (DRU) e revisar as renúncias tributárias que incidem sobre o Orçamento da Seguridade Social, sobretudo aquelas que atingem diretamente as contribuições para a Previdência Social, como a desoneração da folha de salários, a imunidade voltada para entidades filantrópicas e sem fins lucrativos, para a exportação de produtos rurais, e pequenas e médias empresas. De acordo com a Receita Federal (2018), em demonstrativo de estimativa de gastos tributários para orçamento de 2019, os gastos com renúncias relativas à contribuição social foram estimados em quase R$ 157 bilhões, dos quais R$ 64 bilhões eram provenientes de contribuições diretas para o financiamento da Previdência Social (tabela 2).
Essas medidas, associadas a um processo efetivo de cobrança da dívida ativa da União, em especial das contribuições previdenciárias, e ao combate à sonegação, poderiam contribuir para o aumento das receitas previdenciárias. Um estudo técnico da Consultoria de Orçamento da Câmara dos Deputados (Cambraia, 2019[15]) mostra que a dívida ativa previdenciária, em 2017, era de R$ 427,4 bilhões, dos quais apenas 20,4% ou R$ 87,3 bilhões são considerados recuperáveis.
Diante dessas evidências cabe indagar por que esses fatores foram desconsiderados no momento das discussões. Quais são as propostas para induzir o crescimento econômico, aumentar a formalização da força de trabalho e reduzir o desemprego? Por que não foram consideradas formas alternativas de financiamento, dada a atual proposta de reforma tributária e fiscal? Ou, ainda, de forma mais imediata, por que não se considerou revisar as renúncias fiscais já implementadas atualmente? Por que insistir na estratégia de reduzir o déficit da Previdência Social a partir da redução dos gastos, com impacto direto principalmente na população de menor renda?
É preciso promover essa discussão, a fim de evitar que os trabalhadores de baixa renda tornem-se os principais financiados do sistema de Previdência Social brasileiro, e que esse sistema deixe de atingir o seu objetivo primordial: oferecer proteção social.
FONTE
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