sexta-feira, 23 de junho de 2023

Centrão quer assaltar a Saúde * Dr Drauzio Varella&Gabriel Brito e Antonio Martins/Outraspalavras

Centrão quer assaltar a Saúde (II)
Drauzio Varella

É um pesadelo ver a pressão do centrão pelo Ministério da Saúde

Depois do que a Saúde sofreu nos últimos quatro anos vamos retroceder dessa forma humilhante?

Semana passada, passei quatro dias gravando o atendimento médico que a ONG Zoé presta aos habitantes das margens dos rios Tapajós, Guarapiuns e Amazonas.

Sair da correria infernal de São Paulo e cair no mundo silencioso dos ribeirinhos, gente simples que vive em contato íntimo com a natureza, devolve a paz que a cidade grande teima em nos negar. O Tapajós é um rio imenso, que chega a ter 18 km de largura, o Amazonas, nem se fala. Que geografia generosa a nossa.

Estava nesse estado contemplativo quando tive a infelicidade de receber um sinal de internet. Maldita hora.

Os jornalistas comentavam a notícia de que o assim denominado centrão pressionava o presidente para derrubar a ministra Nísia Trindade, com a intenção de entregar o comando do Ministério da Saúde aos deputados que compõem esse grupo.

Se possível "de porteira fechada", termo grosseiro que empregam quando pretendem preencher com apadrinhados todos os cargos com acesso às verbas governamentais.

Parecia um pesadelo: depois dos atentados criminosos que a Saúde sofreu nos últimos quatro anos, vamos retroceder dessa forma humilhante?

Justamente quando nos enchíamos de esperança de que uma profissional respeitada pelos que atuam na área iria organizar a reconstrução do ministério arrasado pela incompetência administrativa, pela estupidez e pelos desmandos de gente prepotente e despreparada para conduzi-lo?

O SUS é o maior programa de saúde pública do mundo. Nenhum país com mais de 100 milhões de habitantes ousou oferecer assistência médica a todos os habitantes. Em pouco mais de 30 anos, fizemos a maior revolução na história da saúde pública brasileira.

O que mais me dói quando vejo o mau gerenciamento do sistema, a falta de financiamento, as interferências políticas da pior espécie, a roubalheira desavergonhada e o desinteresse daqueles que contam com os planos de saúde, é que o SUS dispõe de tudo o que é necessário para funcionar bem.

Não há que inventar nada. Está tudo aí: o programa Estratégia Saúde da Família, em que os agentes batem de porta em porta, mais de 42 mil Unidades Básicas de Saúde, os pequenos hospitais dos municípios para os atendimentos rotineiros, os regionais para os casos mais graves e os hospitais terciários para os procedimentos de alta complexidade, além de programas nacionais como os de imunizações, transplantes de órgãos, hemodiálises, medicamentos de alto custo, o resgate e tantos outros elogiados mundo afora.

O que nos falta são recursos financeiros mínimos, gerenciamento e uma política de saúde pública digna desse nome.

Anos atrás escrevi neste espaço que, apenas no período de 2008 a 2018, o país teve 13 ministros da Saúde. A média de permanência no cargo foi de dez meses. O que dá para construir em período tão curto? Quando eles começam a entender os problemas enfrentados nas grandes cidades e no Brasil profundo, são trocados por outros.

E, pior: não são substituídos por sanitaristas mais competentes, mas por políticos carreiristas que asseguram aos governos maioria no Parlamento.

Por esse caminho, já tivemos ministros sabidamente corruptos, outros eram ignorantes, alheios às dificuldades de acesso à saúde que atormentam o dia a dia dos mais pobres. Um deles confessou não ter ideia do que era o SUS, uma vez que sempre foi atendido em hospitais militares.

O que leva um cidadão a aceitar um cargo nessas condições? Não seria o mesmo que eu aceitar o convite para ser comandante das Forças Armadas sem nunca ter entrado num quartel?

Os desmandos que ocorrem na esfera federal se repetem nos estados e nos municípios.

Quem anda pelo Brasil é testemunha da incompetência dos gestores, das interferências de políticos da pior espécie, dos roubos e dos desmandos que castigam os usuários do SUS.

E enxerga a diferença abissal existente nas cidades em que o secretário municipal e o prefeito são comprometidos com o atendimento à população.

Reconstruir o SUS exigirá trabalho árduo e anos de dedicação dos melhores especialistas em saúde pública.

E estes felizmente existem, embora tenham sido afastados ou rebaixados para posições subalternas, chefiadas por gente com interesses duvidosos e nenhum compromisso com a saúde dos brasileiros.
*
Centrão quer assaltar a Saúde (I)

Por Gabriel Brito e Antonio Martins/Outraspalavras


Captura desviaria recursos do ministério para impulsionar candidatos conservadores nas eleições municipais de 2024. Mas há outro fator decisivo: a transição tecnológica, que pode tanto revigorar o SUS quanto escancarar as portas para sua privatização por dentro

Na semana que passou, escancararam-se as especulações em torno de uma suposta troca de comando no ministério da Saúde, a partir de pressões de “forças ocultas” da política brasileira. O presidente da Câmara dos Deputados e líder principal do “Centrão”, Arthur Lira, encheu a mídia de blefes a respeito de seu interesse em garantir o ministério para seu grupo político. Ao mesmo tempo, a ministra do turismo, Daniela Carneiro, também integrante do grupo, jogou seus dados, fazendo chegar ao público a notícia de que aceitaria sair da pasta, mas com uma “recompensa”: a Diretoria Geral dos Hospitais Federais do Rio de Janeiro, riquíssimo manancial de verbas e alvo de pesadas disputas políticas nos bastidores que antecederam a nomeação do atual diretor, Alexandre Telles. O que está por trás destes movimentos? Qual seu timing preciso? E que consequências adviriam de uma hipotética cedência de Lula?

Um artigo escrito em coautoria pela cientista Sonia Fleury – uma das pioneiras da Reforma Sanitária – e pelo médico e professor Luiz Antonio Neves, ex-prefeito de Piraí (RJ) ajuda a decifrar a questão. Sonia e Luiz Antonio participaram com destaque de uma reunião plenária em que a Frente pela Vida (FpV) examinou o tema, na última quarta-feira (14/6). Seu texto, que será publicado nas próximas horas em Outras Palavras, também ajuda a compreender, de forma mais ampla, a involução das instituições políticas do país. Mostra como os interesses fisiológicos do “Centrão” articulam-se com os apetites de medicina de negócio, no esforço para privatizar o SUS por dentro. Apontam como tais práticas ameaçam corroer a frágil democracia brasileira. E propõem um antídoto: a mobilização social, especialmente nos dias que nos separam da 17ª Conferência Nacional de Saúde e em seus desdobramentos.

Com dotações de R$ 162 bilhões em 2023, o ministério da Saúde é o menos pobre da esplanada, em despesas correntes (mas apenas o quinto, em investimentos). A isso deve-se acrescentar, lembram Sonia e Luiz Antonio, sua imensa capilaridade, fruto do próprio caráter federalista do SUS. As despesas com Saúde são comandadas principalmente por prefeituras e governos de Estado. Mas a fonte de recursos central é a União, que repassa verbas aos demais entes por meio do Fundo Nacional de Saúde. Quase nenhum dos 5.568 municípios brasileiros é capaz de manter os gastos do SUS sem contar com ele.

O ministério da Saúde é, portanto, crucial. Se gerido com espírito republicano, como sob a ministra Nísia Trindade, contribui para dar conforto e construir cidadania entre 160 milhões de brasileiros que recorrem exclusivamente à Saúde pública. Mas se aparelhado para fins eleitoreiros, suas verbas transformam-se em instrumento de chantagem e interferência política espúria. Basta, por exemplo, que irrigue os prefeitos “amigos” e que dificulte o acesso dos adversários a recursos indispensáveis.

Esta ação pode, aliás, ser complementada por outra, a cargo dos próprios deputados e senadores e apontada em reportagem recente da Folha de S.Paulo. Consiste em utilizar as emendas parlamentares, que deveriam beneficiar os municípios, não para seus prefeitos – mas a grupos opositores, que as recebem por meio de entidades civis. A matéria descreve o caso de Amargosa, no interior da Bahia. Lá a Codevasf, alimentada por estas emendas, entrega máquinas de irrigação para grupos políticos ligados a ruralistas enquanto mantém na seca a prefeitura, do PT. Basta imaginar estas práticas multiplicadas pela ação nacional do ministério da Saúde para entender como podem manipular as eleições de 2024, cujas alianças começarão a ser definidas nos próximos meses.

O texto de Sonia e Luiz Antonio chama atenção, a seguir, para um papel mais estratégico do ministério da Saúde: o de definir a configuração futura do SUS – limitando ou ampliando, em especial, a presença da medicina de negócios em seu interior. Os autores descrevem o enorme esforço já realizado por Nísia para recuperar a pasta dos desmandos bolsonaristas. Mas destacam com igual vigor a importância do Complexo Econômico e Industrial da Saúde (CEIS), cuja ampliação é um compromisso de Lula. A partir das encomendas do SUS, lembram eles, o Brasil pode (re)construir uma vasta indústria de medicamentos, vacinas, insumos, equipamentos hospitalares, de diagnóstico e a vasta gama de serviços ligados a eles. Isso será ainda mais importante dado o grande salto tecnológico diante do qual está a Saúde. Nos próximos anos, práticas como as teleconsultas e o uso da Inteligência Artificial irão se tornar onipresentes.

Se bem planejadas, podem ajudar a oferecer serviços de excelência à população e, de quebra, contribuir para a luta contra a reprimarização econômica no país. Caso contrário, desumanizarão os serviços, alienando os profissionais de Saúde da relação com os pacientes e servindo como cavalo-de-tróia para invasão do SUS por corporações privadas. Aqui, é interessante refletir em como entrelaçam-se os interesses da política mais fisiológica com os da medicina de negócios. Sonia e Luiz Antonio lembram, a respeito: “devido à incapacidade do mercado de planos e seguros de saúde de ultrapassar a cobertura além de ¼ da população, mesmo com os subsídios governamentais, sua possibilidade de expandir a lucratividade depende da disputa dos fundos públicos da saúde”…

Há por fim, na investida do Centrão, uma terceira ameaça: a que atinge a própria democracia brasileira. Os autores chamam atenção para uma “conjuntura de disputa político-eleitoral permanente”, na qual “as forças que perderam as eleições presidenciais, mas que são majoritárias no Congresso, buscam emparedar o governo Lula, esvaziando sua força política e impedindo, assim, o cumprimento do programa reformista para o qual foi eleito”. O que está em jogo, demonstra o texto, é “o poder de transformar o país em uma democracia social ou de continuar minando a democracia eleitoral por dentro, destruindo a inteligência do aparato estatal, desmontando as políticas de proteção social, inviabilizando investimentos e construção de uma economia nacional competitiva e uma nação soberana”. O artigo adverte: antecipa-se assim “o cenário eleitoral para as próximas eleições presidenciais que permitiria o retorno de um governo de direita. Esse jogo já está sendo jogado”.

Lula cederá? A depender de sua própria vontade e espírito de sobrevivência, é certo que não. Mas o jogo institucional é bruto. Por isso, Sonia e Luiz Antonio chamam atenção para a necessidade de incluir, no cenário, um elemento hoje ausente: a mobilização social em favor das reformas. E há um cenário muito promissor para exercê-la: a 17ª Conferência Nacional de Saúde (em Brasília, de 2 a 5 de julho). Uma mobilização importante, frisa o texto, já começou nas primeiras etapas (municipais, estaduais, setoriais, e mais de cem “conferências livres”) do grande evento. Este processo se dá, até o momento, sob o silêncio das mídias comerciais.

Mas poderá desabrochar, concluem os autores. Para isso, é preciso que a 17ª Conferência desencadeie ações capazes de demonstrar “que saúde não é mercadoria e que o ministério da Saúde não será moeda de troca, pois o SUS é a maior conquista democrática da nossa sociedade, exatamente porque foi construída no seio das lutas sociais pela democracia”.

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