terça-feira, 23 de agosto de 2022

Gritos de independência e outros gritos * Frei Betto / SP

GRITOS DE INDEPENDÊNCIA E OUTROS GRITOS


 INDEPENDÊNCIA DO BRASIL

No final do século 18, o Brasil-Colônia tinha pouco mais de 3 milhões de habitantes. A metade era formada por escravos. Eles faziam as atividades produtivas mais importantes da Colônia: agricultura, produção do açúcar, mineração, transporte, abastecimento de água, limpeza urbana, serviços domésticos.

Havia ainda as pessoas livres e pobres. No campo, cuidavam das roças, dos animais e do gado. Nas cidades, trabalhavam no comércio, eram vendedores ambulantes, artesãos ou aprendizes, soldados, empregadas domésticas...

Escravos ou pessoas livres e pobres eram uma gente sem direitos. Só valia quem pertencesse às grandes famílias, ou fosse alto funcionário do governo, grande comerciante ou fazendeiro.

Para as famílias dominantes, o Brasil existia para exportar matérias-primas e produtos agrícolas para o mercado europeu e importar produtos manufaturados.

Toda a riqueza que saía da Colônia ia para Portugal, mas não ficava lá. Portugal era apenas um intermediário. Quem comprava a produção do Brasil era a Inglaterra que aproveitava para vender seus produtos a Portugal por preços muito mais altos. Assim, era a Inglaterra que mais enriquecia com a produção do Brasil.


Que vantagens levavam nisso tudo o Rei de Portugal e sua corte?


Eles também enriqueciam com os impostos que os senhores de engenho e os comerciantes deviam pagar sobre a produção e as mercadorias.

Mais ou menos no começo do século 18 (ano de 1700), começou a extração do ouro em grande quantidade em Minas Gerais. Os proprietários das minas tinham que pagar altos impostos à Coroa Portuguesa.

Outra fonte de enriquecimento para os portugueses era o comércio. Os portugueses dominavam o comércio dos artigos importados: produtos alimentícios, roupas, ferramentas, material de construção, tudo. Mas, o abuso na cobrança de impostos e a exploração no comércio começaram a irritar os proprietários ricos do Brasil.

Esse descontentamento contra o domínio do Rei de Portugal por parte dos colonos brancos expressou-se de diversas formas, inclusive através dos movimentos nativistas. No Maranhão, por exemplo, em 1684, houve a Revolta de Beckman. Em Minas Gerais, no começo do século 18, houve a Guerra dos Emboabas. Na mesma época, houve a Guerra dos Mascates, no Nordeste.

Mas, o que estava acontecendo, na verdade, começa a ser percebido por muito mais gente: a decadência de Portugal. A produção era pouca e a Corte gastava tudo em banquetes e compra de artigos de luxo da Inglaterra e da França. E o Brasil tinha que compensar tudo isso.


Começa a surgir o desejo da Independência


Situa-se aqui a Inconfidência Mineira, com Tiradentes à frente. No mesmo período, surge também a Conjuração Baiana.

A Inglaterra também queria livrar-se dos intermediários e vir negociar diretamente com o Brasil. Ela estava passando por um grande desenvolvimento de suas indústrias e necessitava dos produtos brasileiros: açúcar, ouro, algodão, couro, madeiras e outros.

Mas, enquanto Portugal dominasse o Brasil, não permitiria que outra nação viesse negociar diretamente aqui. Os lucros dos intermediários e os impostos da Coroa Portuguesa encareciam as mercadorias para a Inglaterra. Sem Portugal no meio, a Inglaterra compraria mais barato o que precisava do Brasil.

Assim estava a situação lá por 1800: os ricos do Brasil e da Inglaterra queriam livrar-se do domínio português sobre o Brasil.


Um fato apressa a Independência


Em 1808, a França estava em guerra com a Inglaterra, disputando mercados. Para prejudicar a Inglaterra, o Imperador da França, Napoleão Bonaparte, mandou que todas as nações da Europa fechassem seus portos para os navios ingleses. Assim, a Inglaterra não poderia mais negociar com ninguém.

Portugal era tradicional “aliado” e devedor da Inglaterra. De início, não obedeceu a determinação de Napoleão. Depois, foi obrigado a ceder e fechou os portos à Inglaterra. Esta enviou uma esquadra à Portugal e ameaçou bombardear Lisboa.

Ao mesmo tempo, a Inglaterra apresentou uma solução: os ingleses ajudariam a Corte Portuguesa a fugir para o Brasil e, além disso, comprometiam-se a ajudar as tropas portuguesas a enfrentar o exército de Napoleão.

O Rei de Portugal, Dom João Sexto, foi obrigado a aceitar a proposta e partiu para o Brasil com nobres e ricos lotando 36 navios.

Chegando aqui, os ingleses pediram um favor em troca de sua proteção na viagem. Exigiram que o Rei abrisse os portos às “nações amigas”.

Quem eram estas “nações amigas”? Na prática, era apenas a Inglaterra mesmo. As outras nações estavam em guerra junto com a França e, portanto, eram inimigas. Além disso, Portugal fez um tratado comercial com os ingleses. Por este tratado, os ingleses tinham muitas vantagens nos impostos. Vantagens que não seriam concedidas a outras nações.

O tratado ainda deu direito aos comerciantes ingleses de abrirem suas casas comerciais aqui. Agora, a Inglaterra podia negociar diretamente com o Brasil, ganhando maiores lucros.


Independência para quem?


Em abril de 1821, o Rei voltou para Portugal. A guerra já havia terminado, mas não havia mais condições do Brasil continuar como Colônia Portuguesa. 

Negociando diretamente com os ingleses, os proprietários e comerciantes daqui já não precisavam de Portugal para nada. Por isso, convenceram o Príncipe Dom Pedro I, que tinha ficado no Brasil, a proclamar a Independência. 

O Príncipe assim o fez, com o apoio dos navios de guerra ingleses que ancoraram em nossos portos. Ele, então, passou a ser o Imperador Dom Pedro I. 

A Independência do Brasil foi proclamada em 7 de setembro de 1822. A partir daí, nossa terra passou a ter seu próprio governo formado pelo Imperador, com representantes das classes proprietárias e comerciantes do Brasil. Mas, agora, nosso país dependia muito mais economicamente e financeiramente da Inglaterra.

Os escravos e trabalhadores pobres não ganharam nada com a Independência do Brasil. Para eles, tudo continuou igual. Quem levou vantagem foram as classes dominantes daqui e da Inglaterra. 




Fonte: História do Brasil – Vamos contar melhor essa História (CEAT/CPV)


Gritos de independência
por Frei Betto

O grito dos excluídos ecoa neste bicentenário da independência. Ecoa na contramão dos caminhos que restauram o passado, traçados por aqueles que ainda incensam a ditadura e reforçam o apartheid social.

Comemoram-se no próximo 7 de setembro o bicentenário da independência do Brasil. Consta que não houve sangue, apenas um grito, o do Ipiranga. Teria marcado a ruptura com a tutela portuguesa, assim como hoje somos supostamente soberanos frente ao FMI… E manteve no poder o português D. Pedro I, que se proclamou imperador do Brasil. Terminou seus dias como Duque de Bragança. Figura, na relação dinástica, como o 28º rei de Portugal.

Entre o fato e a versão do fato, a história oficial tende à segunda. Ainda hoje se discute se o grito decorreu do sonho de uma pátria independente ou da ambição de um império tropical. Ficou o grito parado no ar, expresso nos rostos contorcidos das figuras de Portinari, no romanceiro de Cecília Meireles, no samba agônico de Chico Buarque, no coração desolado das mães brasileiras que enterram, todo ano, recém-nascidos precocemente tragados pelos recursos que faltam à área social e são canalizados para abastecer o pantagruélico orçamento secreto. Mães que choram, inconsoladas, seus filhos mortos por balas “perdidas” ou vítimas do belicismo policial que sacrifica Genivaldos sem que os assassinos sejam incriminados pela Justiça.

O Brasil, pátria vegetal, ostenta o semblante de uma cordialidade renegada por sua história. Sob o grito da independência ressoam os gritos dos indígenas trucidados pela empresa colonizadora, agora restaurada pela assepsia étnica proposta pelos integracionistas ogropecuários que julgam os territórios dos povos originários privilégio nababesco.

Ecoam também os gritos das vítimas indefesas de entradas e bandeiras; Fernão Dias sacrificando o próprio filho em troca de um punhado de pedras preciosas; bandeirantes travestidos em heróis da pátria pelo relato histórico dos brancos – versão barroca do esquadrão da morte rural, diriam os indígenas se figurassem como autores em nossa historiografia.

Abafam-se, em vão, os gritos arrancados à chibata dos negros arrastados de além-mar, sem contar as revoltas populares que minam o mito de uma pacífica abnegação só presente no ufanismo de uma elite que julga violento o MST, e não a arcaica existência do latifúndio improdutivo.

Pátria armada de preconceitos arraigados, casa grande que traça os limites intransponíveis da senzala na pendular política de períodos autoritários alternados com ciclos de democracia tutelar, já que, neste país, a coisa pública tende a ser negócio privado, com tabelas para partidos de aluguel.

Indígenas, negros, mulheres, desempregados, sem-terra e sem-teto não merecem a cidadania, reza a prática daqueles que sequer se envergonham de legislar em prol do próprio bolso. Para a galera, as tripas, marca indelével em nossa culinária, como a feijoada. Corrompem-se sonhos, valores e sentimentos ao venderem por trinta dinheiros o projeto libertário de uma geração. Os que querem governar a sociedade não suportam os que querem governar com a sociedade, abraçados aos fundamentos da democracia.

Ferida em sua autoestima e com mais de 30 milhões de famintos e quase 70 milhões endividados, a pátria navega a reboque do receituário neoliberal, que dilata a violência, exalta as milícias, o poder paralelo do narcotráfico, a concentração de renda. Se o salário não paga a vida, a vida parece não valer um salário. Os que proclamam que a única utopia é acreditar no fim das utopias trafegam cercados de esquemas de segurança pelas ruas infestadas de famílias miseráveis e, nos semáforos, se exibem jovens malabaristas do circo de horrores. Não se dão conta de que grades e guardas os fazem prisioneiros da própria ostentação.

No Brasil, a inflação corrói o parco auxílio, a agricultura familiar não merece crédito, os hospitais estão doentes, a saúde se encontra em estado quase terminal, a escola gazeteia, o sistema previdenciário associa-se ao funerário e a esperança se reduz a um novo par de tênis, um emprego qualquer, alçar a fantasia pelo consolo eletrônico das telenovelas.

O grito dos excluídos ecoa neste bicentenário da independência. Ecoa na contramão dos caminhos que restauram o passado, traçados por aqueles que ainda incensam a ditadura e reforçam o apartheid social. Ecoa indignado frente à avalanche de corrupção que ameaça nossa frágil democracia. Ecoa do peito daqueles que exigem o direito dos pobres acima da ganância dos credores. Ecoa do clamor por ética na política, transparência nos poderes da República e severa punição aos que traíram os anseios do povo, inoculando-nos o medo de ter esperanças.

Frei Betto é escritor, autor de “Tom vermelho do verde” (Rocco), entre outros livros.

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