SIMON BOLÍVAR E SUA HISTÓRIA
Assim que tive notícia da estreia de uma série sobre a vida de Simon Bolívar no Netflix, em junho de 2019, refiz a minha concorrida lista de filmes de fim de semana. Porém, já com a pipoca, cobertor e companheira de jornada devidamente ordenados, uniformizados em impecáveis moletons e perfilados no sofá aguardando o momento de prestar continência ao General, tive duas decepções.
A primeira é que a série tinha 60 episódios com mais de 50 minutos cada – haja sábado, domingo e madrugadas! Bem, podia aguardar as férias que teria em agosto daquele ano e fazer essa maratona de 50 horas. Se Bolívar cruzou os Andes e atravessou os Llanos no inverno com seu exército para libertar a América, quem sou eu para reclamar de 50 horas no sofá, comendo pipoca e dando empolgados spoilers históricos para minha generala. Concluí que a causa valia o nosso sacrifício!
No entanto, a segunda decepção me obrigou a abortar a jornada revolucionária. Na verdade, Bolívar: una lucha admirable não é propriamente uma série, nem é um épico como eu esperava. É uma telenovela produzida pela Caracol Televisión da Colômbia. Não que eu não reconheça os méritos do gênero mais apreciado da teledramaturgia latino-americana e as potencialidades de explorá-lo na pedagogia popular. Mas, tenho que confessar, não é o meu predileto. E, por isso, assim como o general Francisco de Miranda, capitulei diante da minha missão.
Um ano depois, cá estou eu de quarentena no meio de uma pandemia global, também cumprindo pena pela traição à causa. Pelo ofício de professor, que virou trabalho remoto no confinamento, e pela asma que trago da infância, sigo trancado em casa há… sei lá, já perdi a conta!… e, por isso, tive agora a chance de me redimir ante El Libertador.
Antes de retomar a missão, talvez inconscientemente tentando buscar motivos para ser dispensado dela, resolvi ler um pouco sobre a série e sua repercussão ao longo desse último ano. Descobri que antes mesmo da estreia houve uma polêmica entre os produtores e o presidente venezuelano, Nicolás Maduro. Na semana anterior ao lançamento, Maduro disse: “Las televisoras de la oligarquía colombiana van a inaugurar una miniserie de Bolívar. ¿Cuántas mentiras, difamaciones y basura pondrán en la miniserie?”
A fala do presidente foi respondida de forma veemente pela roteirista, Juana Uribe, e pelo ator, Luis Gerónimo Abreu, que interpreta o Bolívar adulto, dizendo que Maduro devia primeiro assistir a obra para depois fazer comentários a respeito e que tinham certeza que o povo venezuelano se orgulharia do Bolívar retratado na produção.
Só que eu entendi perfeitamente a desconfiança do presidente Maduro. Eu mesmo tenho como meta nunca assistir ao filme sobre Getúlio feito pela Globo Filmes. Não assisti, não vou assistir, não quero saber a respeito, pois tenho a absoluta certeza de que a obra é um insulto à memória do Presidente Vargas, feita pela oligarquia que o perseguiu até a morte e que tenta destruir seu legado até os dias de hoje. Pronto! O comandante Nicolás Maduro havia me dispensado da árdua tarefa.
Porém, no clique seguinte, descubro que Maduro, após a polêmica, não só assistiu à série com sua esposa, como se desculpou com os produtores pela manifestação precipitada, elogiando os atores, o roteiro e se lastimando pela série não ter 1.000 episódios, ao invés de apenas 60. Com isso, não tive escapatória e parti, com um ano de atraso, para uma longa marcha que começa na San Mateo do século XVIII.
A série se divide nas fases da vida de Simón José Antonio de la Santísima Trinidad Bolívar y Palacios Ponte-Andrade y Blanco, o homem mais rico da Venezuela que se converte no maior revolucionário do continente americano. Meu incômodo inicial se deu pela primeira parte da história, que retrata a infância do jovem Simón, lembrar um pouco novelas de época, dessas que a Rede Globo costuma veicular no horário das 6 da tarde. Mas essa parte é importante para a composição dos personagens e do ambiente cultural, econômico, político e sanitário da Venezuela de então. Caso se encoraje por este texto a empreender a mesma marcha e não seja grande admirador desse gênero da dramaturgia, lembre-se nesse ponto da jornada que está vendo a história de ninguém menos que Simón Bolívar! Continue.
Os primeiros capítulos mostram Simón aos 9 anos (interpretado pelo ator Maximiliano Gómez), nas vésperas da morte de sua mãe, María de la Concepción Palacios, que se apressa em resolver questões burocráticas para resguardar o patrimônio da família. Viúva e tuberculosa, María de la Concepción corria contra o tempo pela ambição dos parentes sobre a herança de seus filhos, especialmente por parte de seu inescrupuloso irmão, Carlos Palacios. Nesse período, a rica família Bolívar enfrenta a corrupta e implacável burocracia colonial, comandada pelos chapetones, como eram conhecidos os colonos brancos vindos da Espanha, que discriminavam e subjugavam os criollos, descendentes dos espanhóis nascidos na América.
A brutalidade da escravidão também é retratada na produção. As cenas de violência contra os negros, especialmente contra os escravos fugitivos, são muito impactantes. Historicamente, sabe-se que Bolívar foi acompanhado por toda a vida pelo ex-escravo José Palacios, seu fiel escudeiro que esteve ao lado do Libertador até seus últimos dias, o que foi bem mostrado na série. Sobre o personagem Dionísio, outro ex-escravo da fazenda dos Bolívar-Palacios, sabe-se que era filho de Negra Hipólita, figura importante na vida de Bolívar, a quem ele chamava em suas cartas como “su madre y su padre“. Porém, não há registros de que Dionísio tenha fugido para um quilombo, onde viveu até ser incorporado ao Exército Patriota, como mostrado na série.
A produção usa essa estratégia narrativa de introduzir alguns fatos e personagens ficcionais que concentram histórias, contradições, sofrimentos e anseios de grupos que realmente estiveram envolvidos nas guerras de libertação das colônias. Segundo a roteirista da série, 80% do que é mostrado é baseado em personagens e fatos reais, comprovados pela historiografia, e 20% são ficcionais para permitir a fluidez narrativa e romancear partes da trama, adaptando-a ao gênero dramatúrgico da produção.
É uma estratégia que funciona bem, mas pode confundir um pouco o público brasileiro que, infelizmente, desconhece a história da América Latina. Das resenhas que li em espanhol, foi muito comum ver a frase “é uma série muito boa para revisarmos os conteúdos dos cursos de história da escola”. Mas, como sabemos, as elites brasileiras sempre se esforçaram muito, desde o Império, para que o nosso povo não descubra que o Brasil faz parte do continente latino-americano. Sempre lembro disso quando vejo o jornalismo da Globo chamar a “correspondente para América Latina”, que mora na Argentina, como se São Paulo fosse parte da Europa ou da América Anglo-saxônica.
Como não estudamos, ou estudamos muito pouco na escola a história latino-americana, vale a pena ir pesquisando a respeito dos personagens, fatos e locais à medida que aparecerem na série (com cuidado de não ir na leitura além do ponto em que está assistindo, caso não queira tomar spoilers). Essa metodologia pode converter a série em um pequeno supletivo da história da América Latina, talvez envergonhando o espectador mais curioso que conhece com detalhes a travessia dos Alpes realizada por Aníbal na guerra de Roma contra Cártago, mas nunca tinha ouvido falar do Paso de los Andes, quando o exército maltrapilho de Bolívar cruzou a gélida cordilheira pelo páramo de Pisba para surpreender os espanhóis na tomada de Tunja e Bogotá. Outra recomendação de pesquisa, se não conhecer bem as diversas formatações dos países ao longo das guerras de libertação e a divisão dos vice-reinos que a coroa espanhola fazia no continente americano, é buscar por essas informações geográficas para se localizar melhor nas partes da história apresentadas na série.
Outra dica importante: caso não vá assistir só e conheça um pouco da história latino-americana, por questões de segurança pessoal, sugiro ter cuidado redobrado com spoilers. Fui advertido, em grau crescente de rispidez, que frases como “isso foi antes da derrota em Puerto Cabello”, “depois que destruírem a Segunda República”, “ele ainda não foi exilado na Jamaica”, “só depois que ele ficar viúvo” ou chamar pessoas que aparecem pela patente militar com a qual são conhecidas hoje, especialmente se naquele momento da história o personagem for um simples civil, configura uma, cito literalmente, “sequência irritante de spoilers”. Após o ultimato, “no próximo eu paro de assistir”, me contive, guardando o melhor de todos para o fim, onde terei meu momento pernóstico de ouro, na Conspiración Setembrina: “La Libertadora del Libertador”, “La Libertadora del Libertador”, “La Libertadora del Libertador” – repeti mentalmente por dias aguardando o momento certo para me antecipar alguns milésimos de segundo quando a fala aparecesse.
De um modo geral, a série é muito bem produzida, com cenas incríveis de batalhas famosas, figurinos impecáveis, atores excepcionais – valendo destacar a espetacular atuação de Luis Gerónimo Abreu que deu vida ao Bolívar na maturidade. Na terceira fase da história, quando Bolívar retorna da Jamaica para libertar definitivamente a Grã-Colômbia, a produção ganha uma dinâmica nova, pois é baseada nos diários de Daniel O’Leary, importante documento das batalhas e do dia a dia da guerra. O’Leary foi membro da brigada britânica que lutou ao lado de Bolívar e que passa a ser o narrador da série a partir desse ponto.
A produção é muito rica em detalhes biográficos de Simón Bolívar e também de Manuela Sáenz, ‘la amante y patriota de usted’– interpretada de forma excepcional pela atriz equatoriana, Shany Nadan –, cuja história é apresentada em paralelo à do Libertador até se cruzarem e se apaixonarem em Lima, quando Manuelita se incorpora ao Exército Patriota. Além de possibilitar as situações românticas necessárias ao gênero da teledramaturgia, essa forma de mostrar as duas vidas correndo em paralelo permitiu uma valorização do papel da mulher nas guerras revolucionárias, que ocuparam todos os fronts, precisando ainda confrontar a cultura ultraconservadora da época. Talvez a atuação militar de Manuelita pudesse ter sido mais bem explorada em sua participação na Batalla de Ayacucho, sob comando do General Sucre, onde teve brava atuação, mas foi mostrada de forma muito breve na série.
Sobre o conteúdo histórico, valeria aparas também na forma como retratam o general Francisco de Miranda, o precursor da independência hispano-americana, apresentado como um mercenário decadente, o general Rafael Urdaneta, dando muito enfoque a algumas vacilações desse fiel seguidor de Bolívar, e o general José Antonio Páez, mostrado apenas como um homem chucro dos Llanos, que se alfabetizou depois de adulto. Páez é uma figura interessante, pois, apesar dessa origem simples, foi um homem que se superou incrivelmente ao longo da vida, não apenas liderando o exército de llaneros que foi fundamental nas guerras de libertação, como se tornando o primeiro presidente da Venezuela, após a dissolução da Grã-Colômbia – cargo que ainda veio a ocupar por mais duas vezes –, além de ter aprendido idiomas e se dedicado à música quando teve oportunidade nos interregnos de seus mandatos.
Sobre a história dos confrontos clássicos, apesar da superprodução da Batalla de Pantano Vargas e da Batalla de Boyacá, há a ausência inexplicável da Batalla de Carabobo, na qual Bolívar conseguiu finalmente expulsar os espanhóis da Venezuela e libertar o país. Talvez pela série ser colombiana não julgaram central retratar esse fato histórico, mas é uma ausência notável em uma produção que visa contar a história de Bolívar.
Em relação à biografia do Libertador, há que se levar em consideração que as telenovelas, além serem compostas por inúmeras cenas de romances e mais romances próprias do gênero dramatúrgico, tendem a apresentar as decisões dos personagens como impulsos individuais, desatrelados de sentidos mais transcendentes ou de mudanças na visão de mundo fruto da maturidade. Para a história funcionar, as paixões devem estar no comando, surpreendendo o espectador pela imprevisibilidade e audácia dos apaixonados.
Nesse sentido, é compreensível porque o regresso de Bolívar da Europa para libertar a América é apresentado como uma decisão de um jovem rico em busca de sentido para a vida, que deseja incluir no currículo um feito grandioso que o distinga na História. Talvez por esse motivo, não apareça na série a cena do Juramento del Monte Sacro, episódio em que Bolívar, diante de seu ex-professor venezuelano, a quem reencontra na Europa, o revolucionário filósofo e pedagogo Simón Rodríguez, faz um juramento se comprometendo a lutar até seu último dia pela causa independentista hispano-americana.
Apesar de não ter frequentado cursos formais, além da escola militar, Bolívar teve grandes tutores ao longo da vida. A visão de um criollo que, a partir dos estudos e vivência nas metrópoles do mundo, dá inteligibilidade às suas revoltas políticas, compreendendo o papel das colônias dentro do sistema mundial e jurando tomar para si a causa da libertação de seu povo, talvez não coadune com o gênero narrativo da produção. O fato é que daria uma bela cena, Bolívar bradando o juramento no monte romano, cujo conteúdo conhecemos por trocas de cartas posteriores entre ele e Simón Rodríguez: “¡Juro delante de usted, juro por el Dios de mis padres, juro por ellos, juro por mi honor y juro por mi patria, que no daré descanso a mi brazo, ni reposo a mi alma, hasta que haya roto las cadenas que nos oprimen por voluntad del poder español!”
Por fim, é interessante que, mesmo sendo colombiana, a série toma o partido de Bolívar na rivalidade com o general Santander, mostrado como alguém hesitante, sempre disposto a sabotar o projeto da Grã-Colômbia. Na disputa entre santanderistas e bolivarianos, que se deu em torno do federalismo liberal e do centralismo autocrático, com o qual o Libertador queria evitar a fragmentação do novo país, a história apresentada é claramente favorável à visão defendida por Bolívar.
No entanto, curiosamente no episódio da Conspiración Setembrina – aguardado por mim desde o início para o meu spoiler de placa –, a série isenta Santander do complô, a despeito das provas que existem da sua culpabilidade. No evento central desse episódio, quando eu me preparava repetindo mentalmente “La Libertadora del Libertador”, “La Libertadora del Libertador”, aguardando a hora exata… tocou a companhia e eu perdi o timing!!
Era a padaria que agora, na pandemia, tem feito entregas em casa, protegendo seus consumidores do coronavírus e das ilusões cinematográficas que podem nos fazer esquecer da mediocridade existencial que vivemos no atual momento. Máscara no rosto, álcool em gel preparado, tive que ir lá fora atender o entregador, esse herói latino-americano do século XXI que vem salvando milhões de vidas montado em sua moto, enquanto luta contra o subemprego aguardando a libertação da Pátria.
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BOLÍVAR BIOGRAFIA
CARACOL TV E NICOLAS MADURO
El Presidente de #Venezuela, Nicolás Maduro, se retracto públicamente este 31 de julio de 2019 sobre sus opiniones previas en torno a la serie "Bolívar, una lucha admirable" escrita por Juana Uribe, producida por Caracol Televisión y distribuida por Netflix. La recomienda ampliamente. "Cometí conceptos prejuiciados y adelantados sobre la serie, y me equivoqué. Ofrezco excusas. Hemos quedado maravillados y conmovidos. Lograron en la serie traer un Bolívar, vivo, humano, sensible"
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