Quando soube que sua manhã de ontem no Rio estava reservada para o
encontro com um sambista brasileiro, o cubano Compay Segundo fez
apenas uma pergunta. ''Ele é velho?'', quis saber. Sorriu em seguida,
feliz diante da resposta: ''Veteraníssimo''. Ao encontrar-se com seu
interlocutor - o mangueirense Nelson Sargento, 77 anos -, a estrela de
Buena Vista Social Club, 94 anos, não deixou barato. ''És un chico'',
constatou, diante de seu mais novo compay (ou compadre), como os
cubanos do interior tratam os amigos - daí, aliás, o apelido que virou
nome artístico.
Não há decepção na frase. Apenas uma piada, comum entre essas pessoas
para quem o tempo passa mais devagar do que na vida dos mortais
comuns. Deu, claro, em samba e em música cubana. Tanto no batuque na
xícara sobre a mesa quanto numa inesquecível troca de gentilezas ao
violão. Quem viu o brilhante documentário realizado em 1998 por Wim
Wenders, sobre os artistas cubanos, pode ter certeza daquilo que
suspeitou ao sair do cinema: os músicos do Buena Vista são primos,
compays dos sambistas cariocas.
Puros - Muito mais ativo do que o esperado para alguém na sua idade,
Compay Segundo ostenta. Orgulha-se de contar que fuma charuto -
Montecristo número 4, para os iniciados - desde os 5 anos de idade,
quando acendia os puros para sua avó, ainda em Siboney, uma pequena
cidade do interior de Cuba, onde nasceu. O hábito de quase nove
décadas faz dele o garoto-propaganda mais que perfeito da indústria do
tabaco. Por isso, Compay está no Brasil, acompanhado do músico Isaac
Delgado, para o show de lançamento, hoje no Copacabana Palace (apenas
para convidados), do cigarro cubano Romeo y Julieta, que começa a ser
vendido por aqui.
É a segunda vez que Compay Segundo se encontra com o samba. Três anos
atrás, na outra visita que fez ao Brasil, esteve com Walter Alfaiate.
Agora, vestido a caráter - terno impecável, chapéu e, claro, o puro
como uma extensão da mão direita, entre o indicador e o médio -,
encontrou Sargento, que levou suas credenciais na camisa, da Velha
Guarda da Mangueira. Compay ouviu com especial interesse a breve
história da mais tradicional das escolas de samba e seu Social Club
fundado por Cartola, Carlos Cachaça, Nelson Cavaquinho e tantos
outros.
Em seguida, o cubano batucou o samba que costuma cantar em seus shows
com o harmônico, instrumento que inventou ao acrescentar uma sétima
corda (repetição da terceira) num violão comum. ''É Na baixa do
sapateiro'', Nelson Sargento identifica num estalo a música de Ary
Barroso. ''E ele era negro?'', pergunta Compay, falando de música e
não de raça. ''Não, mas fazia samba de raiz'', responde Sargento.
''Esta é a nossa identidade musical, que sofre influências mas se
mantém viva'', acrescenta o sambista.
África - Para mostrar que são variações de uma mesma fonte, Compay
Segundo propôs uma parceria, ''em ritmo africano'', batucando em
xícaras de café. A primeira vez serviu como ensaio - depois, os dois
encaixaram o ritmo com perfeição. ''Veio tudo da África'', atesta
Sargento, admirado diante da coincidência seguinte: seu último disco
(que ele deu de presente ao amigo) chama-se Flores em Vida; o de
Compay, Las Flores de la Vida. ''Cedo ou tarde, as flores acabam
chegando'', comenta o cubano.
Na manhã em Copacabana, elas vieram ao som do violão, primeiro com o
cubano cantando Chan Chan, apresentada por ele e Elíades Ochoa na
abertura de Buena Vista Social Club; em seguida, o cubano cantou a
música-título de seu último disco, composta a partir da visão de um
jardim na Alemanha. Sargento devolveu com a sua visão das flores, na
verdade uma reflexão sobre o (mau) hábito de se homenagear apenas os
mortos. Foi quando Compay mostrou, orgulhoso, a medalha ganha pelo
primeiro prêmio Grammy que recebeu (acumula também uma outra
indicação), pelo CD Buena Vista, na verdade o reconhecimento de uma
vida dedicada à música, mas conhecida internacionalmente apenas depois
do documentário de Wim Wenders.
Como Nelson Sargento, Compay Segundo descobriu sua vocação aos 15
anos, ainda em Siboney, quando assistiu a um violonista na festa de
San Luís de los Canelles. Tempos depois, mudou-se para Santiago de
Cuba, para trabalhar com o pai, maquinista dos trens que carregavam
manganês. Um dia, viu um grupo de músicos que se reunia aos sábados
numa praça da cidade. ''Aprendi olhando'', relembra. ''Olhando se
aprende muita coisa''.
Clarinete - Sua viagem musical teve como capítulo seguinte o
clarinete, ''por causa do som doce''. Compay, que ainda era apenas
Francisco Repilado, como foi batizado, comprou o instrumento de um
pequeno produtor de charutos, mas não com dinheiro. ''Perguntei
quantos puros teria de fazer para ficar com o clarinete. Eram dois
mil'', conta o início na atividade que o sustentou nos longos anos de
amadorismo na música. Em Santiago de Cuba, Compay se revezava entre o
trabalho na Fábrica de Tabaco Montecristo e o conjunto Matamoros, do
qual participou por três anos. ''Tinha muita habilidade para fazer
charutos'', explica ele, que fazia até 300 por dia, quando não havia
shows.
O nome artístico hoje famoso surgiu em 1942, quando formou no dueto
Los Compadres, onde fazia a segunda voz. Compay Segundo virou grife e
hoje mora no mundo, levando a música cubana aos palcos mais
improváveis. ''Tenho ficado pouco em Havana'', reconhece. Do seu país,
além da música, carrega o orgulho e os charutos. Hoje, fuma três por
dia, com aval do médico Francisco Estrada, que o acompanha na viagem
ao Brasil. A longevidade é explicada com encantadora simplicidade.
''Nós, músicos, temos uma vida alegre, porque até dormindo sentimos a
música. Melhor ouvir uma música do que um canhão'', ensina ele, diante
da silenciosa aprovação de Nelson Sargento, outro fumante saudável e
Um leilão com Fidel
Quando está na ilha de Fidel, Compay sai pouco de sua casa, localizada
na Praia Miramar, nos arredores de Havana. Na rua, costuma ser cercado
por crianças, que lhe pedem para cantar Chan Chan. Não que ele não
goste das homenagens. ''Não me sobra muito tempo para atendê-los'',
lamenta ele. Em fevereiro último, esteve com Fidel Castro no Festival
do Charuto de Havana. O presidente lembrou que no mesmo evento, um ano
antes, Compay participara de um leilão, quando vendeu seu chapéu por
US$ 17.500 (cerca de R$ 40 mil). O velho líder convocou novo leilão e
o chapéu foi vendido por US$ 20 mil.
''Doei o dinheiro para os meninos de Cuba'', conta o músico, que, pela
primeira vez, aceita falar sobre o governo de seu país. ''Vi muitos
presidentes, mas nenhum é como Fidel, um presidente moderno'', avalia.
''Quando vai fazer algo para as crianças, por exemplo, conversa com
elas, não com os adultos. É presidente de toda Cuba, não apenas de uma
parte'', elogia, contando que neste momento estão todos na ilha
mobilizados para matar um mosquito - o mesmo aedes aegypti da dengue
que inferniza os cariocas. A diferença é que lá estão conseguindo.
Picanha - Ele diz que os músicos do Buena Vista são todos amigos,
ainda que não tenham mais se reunido após o show no Carnegie Hall
realizado por Ry Cooder, também produtor do documentário. ''Temos
nossas carreiras, não há como conciliar a agenda de todos'', explica
Compay, o mais velho dos integrantes da sociedade que formou o clube
que, fechado ainda nos anos 50, virou lenda.
Ressuscitado pelo minucioso trabalho do americano Cooder, o talento de
Compay Segundo e de Ibrahim Ferrer, Rubén González, Elíades Ochoa e
Omara Portuondo, entre outros, renasceu no CD Buena Vista Social Club,
sucesso planetário premiado com o Grammy em 1997. ''Eles são todos
jovens e muito atarefados'', completa Compay, que, apesar da idade,
tem rotina semelhante mundo afora.
O cubano não se rende aos 94 anos. Anteontem, foi a estrela de um
almoço numa churrascaria rodízio onde, segundo acerto com seu médico,
só tomaria uma prosaica sopa. Diante daquela orgia de picanhas e
maminhas passando à sua frente, pediu um vinho tinto e se regalou sem
medo. Bobagem para alguém que, pai de cinco filhos, busca com afinco
uma parceira para o sexto. ''Só preciso de uma noiva bem jovem'',
avisa Compay Segundo, que é casado.
(JB,19/03/2002)
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