Pelé: uma representação além do futebol
O ano de 2022 termina não só com o fim do processo de destruição do Brasil sob o governo de Bolsonaro, mas também com a perda física do nosso Rei do Futebol: Pelé, aos 82 anos, nos deixou no dia 29 de dezembro. Falamos de sua ausência física pois sabemos que seu nome e sua presença ultrapassam as questões materiais, uma vez que Pelé ultrapassou as barreiras do esporte, e como maior atleta do século XX fez do Brasil um país reconhecido internacionalmente.
Às portas do ano que se inicia, também teremos o retorno de Lula à nossa presidência. Ter em tão curto espaço de tempo a perda de Pelé e a posse de Lula nos leva a se envolver em questões fundamentais para reflexão a respeito de nosso povo brasileiro. É porque Pelé sintetiza a luta de um povo em sua busca por reparações históricas a partir de um esporte que no Brasil, nos primeiros anos do século XX, era apenas praticado por uma elite econômica e burguesa nas principais cidades do país.
Ao levarmos em consideração as conquistas do Rei com a bola nos pés, abrimos nossos olhos para as referências do movimento de luta contra o racismo no Brasil ao longo dos anos que se sucederam após a Abolição. Logo o futebol, que viu brotar no ano de 1904 em Bangu, um bairro operário da zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, o Bangu Athletic Club - assim mesmo, escrito em inglês por conta de sua diretoria ser parte britânica -, um clube de operários da fábrica de tecidos local e que, conta a história, foi palco não só da primeira partida de futebol no país e da chegada da primeira bola, como também foi o primeiro time da modalidade a ter em seu elenco um homem negro.
Ainda nos subúrbios cariocas também vimos o Vasco da Gama, em 1923, levar o campeonato carioca daquele ano, tendo em seu esquadrão jogadores negros. Times das elites cariocas, como América, Flamengo, Fluminense e Botafogo, que jogavam apenas com jogadores brancos, sucumbiram diante dos Camisas Negras. Fizeram história e tornaram-se referência para além dos gramados em um momento em que a questão racial no Brasil ainda era fortemente marcada pelos preconceitos e estereótipos herdados dos mais de três séculos de escravidão.
A morte de Pelé cai sobre nossas vidas em um momento importantíssimo para as políticas raciais no Brasil. Em 2023 será debatida a prorrogação da Lei de Cotas nas universidades do país, tendo como proposta sua ampliação da aplicação para mais 50 anos. Por isso, a importância de refletirmos da representatividade de Pelé ao pensarmos a reconstrução de nosso país após essa temporada de desmonte, uma vez que temos ciência de toda sua importância até mesmo a nível diplomático.
O único jogador de futebol a conquistar três títulos mundiais com a seleção de seu país é um homem negro, vindo do interior de Minas Gerais. Pelé é a personalidade mais conhecida do mundo quando falamos de Brasil. Interrompeu, em 1969, uma guerra civil na África, destacando a importância de sua representação também para a população negra mundial. Sendo assim, podemos afirmar que Pelé junta-se a outras figuras brasileiras que têm papel fundamental na construção do Brasil moderno, em especial após a Segunda Guerra Mundial.
Diante deste processo de conquistas dentro e fora do mundo do esporte, Pelé está ao lado de figuras nacionais que atuaram em outras áreas. Não podemos deixar de cruzar sua pessoa com outras tantas erefrências de personalidades negras que também construiram as estradas da luta antirracista em nosso país, como Abdias do Nascimento e sua luta política pela libertação de presos políticos do Estado Novo, além de sua contribuição artística; Caó, cujo principal resultado de sua luta política foi ter incluído na Constituição de 1988 o racismo como crime inafiançável e imprescritível; Lélia Gonzales e seus estudos sobre a cultura negra no Brasil e sua participação na fundação no Movimento Negro Unificado; Benedita da Silva, a primeira senadora negra do Brasil e primeira vereadora negra da cidade do Rio de Janeiro; Milton Santos e sua contribuição à Geografia mundial, sendo a primeira personalidade de fora do mundo anglo-saxão e o primeiro brasileiro a receber o Nobel de Geografia; Conceição Evaristo e sua influência na Literatura pós-modernista; coronel Nazareth Cerqueira e sua política de segurança comunitária, repensando o papel da Polícia Militar no RJ; Marielle Franco, assassinada por impor sua voz contra as desigualdades sociais enquanto vereadora no Rio.
A lista de nomes e referências na luta contra as estruturas racistas no Brasil é grande. A representatividade das lutas de liberatação do povo negro no Brasil atravessam a histórica luta de Zumbi e desemboca em Anielle Franco e Silvio Almeida. Pelé, entre essas diferentes personalidades, é referência para jogadores também negros ao redor do mundo, e que brilharam ou ainda brilham e suas atividades. Não podemos esquecer de nomes do futebol, como Adriano Imperador que, mesmo tendo reconhecimento mundial, jamais esqueceu suas origens na Vila Cruzeiro; e Kilyan Mbappé, o segundo jogador mais jovem a conquistar uma Copa do Mundo com a seleção de seu país, em 2018, e que lamentou demais a partida de seu ídolo de referência.
Nosso Rei, que nasceu Edson e se imortalizou Pelé, fez a seleção brasileira ser referência de pluralidade racial. O único monarca reconhecido por outros monarcas e repúblicas; um rei do povo, da ginga, do sangue bantu que ergueu um país. O maior de todos os tempos discursou para um Maracanã lotado que assistiu ao seu milésimo gol e nos deixou uma mensagem inspiradora, que dizia: “Pelo amor de Deus, o povo brasileiro não pode esquecer das criancinhas, as criancinhas pobres”. Pelé, que sintetizava na cor de sua pele a história das raízes de nosso país, com seu jogo reinventou o futebol e descortinou o Brasil para outras nações. Foi diplomata de chuteiras, tendo sua imagem a marca da brasilidade; trajando o manto canarinho e fazendo história no Santos, tornou-se lendário.
Sua imortalidade estará presente na luta diária pela reparação histórica do povo negro no Brasil e no mundo. Teremos a oportunidade de retomar os debates de forma séria sobre a construção de uma verdadeira agenda antirracista atrelada aos novos tempos, durante o novo governo de Lula. Assim, podemos ter a certeza que seremos ouvidos para que em cada rua deste país, em cada subúrbio, periferia e favela do Brasil tenhamos o Rei como inspiração presente na vida de nossas crianças, jovens e adultos.
Carlos Santana
Ex-deputado federal por cinco mandatos pelo PT-RJ; Presidente do Sindicato dos Ferroviários da Central do Brasil; Presidente estadual da CUT-RJ; Professor universitário; Doutor em História pela UFRJ e Bacharel em Direito.
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