'O governo não está fazendo nada na reforma agrária, é uma vergonha', critica Stedile
Dirigente do MST dá nota três à política de democratização da terra do governo federal
´Passados 14 meses desde o início do terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o governo “está em dívida” com a reforma agrária, afirma, em entrevista ao Joio, o economista João Pedro Stedile, dirigente e fundador do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). “É uma vergonha. Nós já estamos há um ano e meio, não avançamos. Desapropriação não avançou. O crédito para os assentados não avançou, nem o Pronera [Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária]”, critica, durante conversa em uma tarde fria de São Paulo, na Secretaria Nacional do movimento.
Apoiador de Lula, o MST atuou fortemente para a eleição do petista em 2022. Stedile reforça a necessidade de seguir na defesa do presidente frente aos “seus inimigos” que, segundo ele, são as multinacionais, o capital financeiro, o latifúndio “predador e parte do agronegócio. “E nós queremos defendê-lo frente aos seus inimigos. Agora, o governo como um todo está aquém da nossa expectativa, da classe trabalhadora em geral”.
Na entrevista, Stedile conta que a principal conquista do MST, que completou 40 anos de vida em janeiro deste ano, é dar dignidade aos sem-terra. Explica a mudança programática do movimento, que nasceu defendendo uma “reforma agrária clássica” e hoje defende uma “reforma agrária popular”, e o que acredita serem os três modelos de agricultura existentes no país hoje: “um dos trabalhadores e dois do capital”.
O economista afirma, também, que a questão entre a agricultura familiar e o agronegócio, não é uma incompatibilidade de tamanho e propriedades, mas sim uma incompatibilidade de modelo. “Lamentavelmente, pela natureza do atual governo do Lula, de composição de classe no governo, não tem consciência dessas diferenças, dos interesses e das contradições. Já perdi a paciência de ouvir ministro dizer que não há incompatibilidade entre a agricultura familiar e o agronegócio. O agronegócio usando agrotóxico é incompatível com o vizinho de dez hectares que não usa, porque ele vai contaminar, vai matar a biodiversidade”, explica.
Confira a entrevista na íntegra:
Você pode fazer um balanço dos 40 anos do MST e das suas principais conquistas: para além dos números de assentados, cooperativas, agroindústrias, poderia falar sobre as conquistas simbólicas, ideológicas e de educação?
É muito difícil fazer um balanço que seja abrangente. Eu não me atreveria a dar essa manchete. Eu acho que o principal aspecto é que nós conseguimos construir um movimento popular, de camponeses muito pobres. Que, com a sua luta, conquistaram a dignidade. O sem-terra, depois que entra no MST, começa a caminhar com a cabeça erguida. E caminhar. O sem terra peão, o sem terra assalariado, o sem terra meeiro é um servo. Ele sempre está subjugado, não só pela exploração do seu trabalho, mas também pelas relações sociais.
Então, o MST, eu acho que ele recuperou uma parcela muito grande da população brasileira do campo que, em geral [são pessoas], que sempre foram excluídas, que são herdeiras dos 400 anos de escravidão e são herdeiros de um campesinato que não conseguiu terra. Então, se fosse para resumir numa só palavra, eu diria que o MST, nesses 40 anos, recuperou a dignidade dessas pessoas.
O segundo aspecto – que também nós valorizamos muito – é que o movimento sempre trabalhou as relações sociais e a família. Nós não somos um movimento de homens adultos. Nós somos o movimento de todos. Desde o início do MST, as mulheres participaram, os mais idosos, as crianças, os jovens. Então, as formas como nós atuamos levaram a que toda a família se incorporasse em alguma atividade. Isso é muito importante porque vai mudando as relações sociais na própria família. E também nós incorporamos no nosso modus operandi a valorização de aspectos culturais e da culinária e das músicas que, em geral, pela hegemonia urbana da televisão, sempre eram relegados. Para quem vive no campo, então, foi como um ressurgimento, uma revalorização do que é a cultura no campo, desde a comida, a música, os seus saberes e a própria religiosidade. E digo como autocrítica: a esquerda nunca deu muita bola para a religiosidade. Como nós somos um movimento de camponeses, que teve desde o início muita influência da Teologia da Libertação, isso nos permitiu incorporar o respeito pela fé das pessoas, por suas práticas religiosas.
Também tivemos muitos avanços na economia. Deu para perceber que não bastava conquistar terra para sair da pobreza. Desde o início, estimulamos a organização das cooperativas, a organização das agroindústrias e, ao longo dos 40 anos, fomos também evoluindo para uma visão mais ampla da função social da agricultura. Na elaboração atual, nós consideramos fundamental, produzir alimentos saudáveis. Essa é a função da agricultura. Portanto, extrapola os meus interesses, os da minha família, os da minha comunidade ou do meu assentamento. A minha missão no mundo é produzir alimentos para os outros. E alimentos saudáveis que preservem a saúde das pessoas. E, portanto, nós combatemos desde sempre o uso de agrotóxicos. Mais recentemente, também incorporamos a visão de que é importante defender a natureza, porque o ser humano é parte dessa natureza. A sua saúde, a sua vida, as suas relações, dependem dessa interação com a natureza, sobretudo no meio rural. De início, a própria natureza nos ajudou a nos conscientizar, em função das mudanças climáticas, das tragédias que vêm acontecendo como contradições, das próprias agressões que o capital faz ao meio ambiente.
Evidentemente que, durante os 40 anos, também cometemos muitos erros e tivemos muitas dificuldades de organizá-lo. [Erros] que são sempre evidenciados pelos nossos inimigos, pelos latifundiários, pela direita que só criticam o MST. Mas nós não nos preocupamos com a crítica. Quando ela vem de aliados, nós procuramos entender e quando ela vem dos inimigos, nos dão a certeza que nós estamos no caminho certo. Porque nós temos interesses antagônicos entre a burguesia, o latifúndio e os trabalhadores.
Considerando que o Brasil perdeu oportunidades de fazer a reforma agrária e de a conjuntura ser tão adversa para o tema nesses últimos anos, a que você atribui o fato de o MST continuar sendo um movimento relevante?
É verdade que nunca houve reforma agrária no Brasil. E que os muitos projetos ou programas da reforma agrária que foram apresentados não se viabilizaram ou mesmo foram derrotados. Uma das causas é porque o programa de reforma agrária não pode ser separado de um projeto de país. Ele tem que fazer parte das mudanças gerais da sociedade. É por isso que, na minha opinião, o tempo histórico que chegamos mais próximo de fazer uma reforma agrária foi em 62 ou 64, quando a sociedade em crise do capitalismo industrial começou a debater um projeto de país, um projeto para o Brasil. E a forma de debater esse projeto de Brasil foi naquelas propostas de reforma de base, que abarcavam toda a vida socioeconômica do povo brasileiro. E, entre elas, tínhamos a reforma agrária, que não era uma bandeira só política ou de propaganda. Naquele período, nós fomos agraciados pela sabedoria do Celso Furtado, que elaborou um projeto de reforma agrária que foi histórico – e é até hoje, no meu modo de ver. Foi o mais radical do ponto de vista de mudanças que se propõem. Infelizmente, ele não se viabilizou por essa aliança empresarial-militar que os americanos projetaram para o Brasil. E as reformas não foram viabilizadas, nem a reforma agrária. E nós tivemos 20 anos de ditadura militar que recolocou a economia brasileira como uma mera colônia ou uma economia dependente do capital estrangeiro, mas sobretudo dos interesses dos Estados Unidos. Bem, mesmo em 2002, quando nós ganhamos eleições com Lula ou com a esquerda, a nossa vitória foi muito mais uma reação da população frente aos problemas que o neoliberalismo tinha provocado, do governo Fernando Henrique Cardoso e do [Fernando] Collor do que um projeto de país. O projeto de país que nós tínhamos, onde entrava a reforma agrária, foi em 89. Aí sim, aquele famoso programa democrático-popular que o Lula defendeu na campanha. Ele incluía a reforma agrária. E vinha de um processo de mobilização de massa, mas nós fomos derrotados pela conjuntura internacional. Derrotados pela força que a burguesia ainda tinha nos meios de comunicação e pelo poder econômico da burguesia.
Então, quando nós ganhamos eleição, em 2002, já era em outra circunstância, não havia um projeto de país e não havia o reascenso do movimento de massas, de maneira que o Lula se dedicou a resolver conflitos e o ritmo da reforma agrária. Desde sempre por não ter um programa de país e um projeto de reforma agrária, ele só avançou no tempo da pressão popular, das ocupações, das marchas. E, agora, apesar dessas derrotas como projeto de país, com o projeto de reforma agrária, que é a essência da tua pergunta, por que nós resistimos. É porque a causa é justa. E porque há uma necessidade socioeconômica que é real. Ainda há milhões de trabalhadores que vivem no interior ou trabalham na agricultura para o latifúndio, para o agronegócio, e ter autonomia sobre a terra é ainda uma solução.
Em termos conceituais, com a mudança do cenário no campo no Brasil vocês tiveram uma mudança programática. O que é para o MST a reforma agrária clássica, de inspiração mexicana, e o que é a reforma agrária popular, que hoje vocês defendem?
No senso comum das pessoas, ou mesmo da academia brasileira que nunca se dedicou a estudar a reforma agrária, ela é um genérico que serve para tudo. No entanto, na história recente da humanidade, desde quando começou a se utilizar essa expressão, houve muitos tipos de reforma agrária, de acordo com a luta de classes, com a história de cada país. Durante a pandemia, acabei me dedicando a um projeto que já tinha há anos na cabeça, estimulado por amigos intelectuais orgânicos de movimentos camponeses do mundo inteiro. Organizei aquela coletânea “Experiências históricas de reforma agrária no mundo” que sistematiza os vários tipos de reforma agrária.
Aqui no Brasil, a elaboração teórica mais precisa foi a do Celso Furtado, que era ainda uma proposta de reforma agrária clássica. Ela se propõe a democratizar a propriedade da terra, a eliminar o latifúndio, a transformar os camponeses em produtores de mercadorias para o mercado interno e, ao mesmo tempo, consumidores de mercadorias da indústria para que eles melhorem de vida, porém comprando bens industriais: máquina de lavar, televisão, moto, carro, etc. Então, a concepção da reforma agrária clássica é uma reforma agrária desenvolvimentista e conjugada com o desenvolvimento das forças produtivas capitalistas. Porém, para ela se viabilizar politicamente – já que ela é uma ação do Estado –, depende de uma aliança da burguesia industrial com o campesinato. Essa aliança nunca houve aqui no Brasil. Não que o campesinato não queira. É que a burguesia industrial brasileira não quis, porque ela sempre foi subordinada ao capital estrangeiro. Ela nunca pensou a nação como um projeto desenvolvimentista, a burguesia brasileira nunca foi nacionalista.
Nós nunca tivemos uma burguesia nacional?
Nós nunca tivemos uma burguesia nacional, apesar de ela ser brasileira. Isso quem nos ajudou a compreender foi o Florestan Fernandes. E então nos faltou a força de uma burguesia nacionalista para implementar a reforma agrária. Mas nós, quando nascemos como o MST, com a redemocratização do país, o nosso programa era de uma reforma agrária clássica, com a ideia de ‘vamos enfrentar o latifúndio e vamos desenvolver as forças produtivas no interior, aumentar a produção, comprar trator, se desenvolver’. Com isso, a nossa turma sairia da pobreza.
Com o passar dos anos, nós fomos percebendo que isso não era suficiente. Então, aquele ideário que marcou o campesinato em toda a América Latina – e, como você bem disse, teve origem na influência do Emiliano Zapata, quando ele resumiu a proposta de reforma agrária mexicana, que nem tinha o nome de reforma agrária, eles chamaram de Plan D’Ayalla – era terra para quem nela trabalha. Portanto, era uma visão bem camponesa. Nem sequer era ainda a reforma agrária clássica. O MST, quando nasceu, fazia esse misto entre a visão mexicana, mas nós nos demos conta que não tinha viabilidade nem econômica nem política no Brasil. Tanto que ela não se realizou, apesar da crise da década de 1960. Fomos amadurecendo, debatendo e, com base na prática, nas contradições reais que fomos vivendo, com base no estudo das experiências históricas que nós chegamos a essa formulação nova de uma reforma agrária popular.
Ela começou a ser gestada no movimento lá por 2010, e daí a formulação ainda embrionária do Congresso do MST de 2014 já vai na direção de uma reforma agrária popular. E a essência da reforma agrária popular é que ela coloca no centro não mais o trabalho do camponês, mas a produção de alimentos para toda a sociedade. Coloca no centro o respeito à natureza, o desenvolvimento de agroindústrias, mas na forma cooperativa. E evidentemente que, para ela se realizar de uma forma universal no Brasil, ela teria que conjugar um governo popular e um movimento camponês forte – e essas condições ainda não se deram. Então, por isso que, apesar de ser uma formulação teórica, desde 2014 as condições objetivas ainda não se realizaram. Porque uma reforma agrária popular depende dessa conjugação.
Em vez de burguesia industrial, agora é um governo popular que está interessado em resolver o problema da fome, da pobreza, da desigualdade que tem na sociedade, no Brasil, em qualquer parte. E, ao mesmo tempo, ela se realiza não por vontade só do governo, mas ela precisa de movimentos camponeses muito fortes – não só o MST, mas outros setores do campesinato. E é nisso que ela se diferencia da clássica, porque a reforma agrária popular não é apenas uma reforma camponesa, não é só para resolver o problema de pobreza do sem-terra. É uma reforma agrária que pensa a sociedade, que pensa a nação e, por isso, ela tem que se preocupar em resolver o problema de todo o povo – daí o nome popular.
“É uma reforma agrária que pensa a sociedade, que pensa a nação e, por isso, ela tem que se preocupar em resolver o problema de todo o povo – daí o nome popular”.
Você afirma que há três modelos de agricultura. O que chama de latifúndio predador improdutivo, o agronegócio e a agricultura familiar. Gostaria de entender quem consideram como inimigo. Porque antes se falava só no latifúndio improdutivo, mas o agronegócio pode ser altamente produtivo…
É verdade. Mesmo na esquerda ou nos movimentos camponeses, historicamente só aparecia a grande propriedade e o latifúndio como, digamos, um fantasma de classe, ideológico. Porém, a realidade do Brasil foi evoluindo e nós chegamos hoje, então, a três modelos que atuam na agricultura: dois do capital e um dos trabalhadores. A denominação desses modelos é ainda um exercício político. A academia brasileira nunca se debruçou sobre isso. Nós, então, de forma militante, estamos adotando essas denominações. Primeiro, há uma forma de explorar a agricultura brasileira, que é o chamado latifúndio predador, que são as grandes propriedades do latifúndio, mas que só se dedica a acumular capital, se apropriando de forma privada dos bens da natureza. Ele não se preocupa com o desenvolvimento capitalista das forças produtivas. Não contrata gente, mas eles enriquecem naquilo que os clássicos [Karl] Marx, Rosa Luxemburgo explicaram como acumulação primitiva. Então há o setor que nós classificamos como latifúndio predador no Brasil, de grandes proprietários que vão lá para a natureza e se apropriam. Em geral, eles atuam na fronteira agrícola. Mas a fronteira agrícola não é só lá na Amazônia, nós temos em todos os Estados, ou seja, onde estão os bens da natureza em cada estado.
Por exemplo, aqui em São Paulo, quando o governador Tarcísio [de Freitas] entrega terra pública praticamente de graça, legalizando terras griladas no Pontal [do Paranapanema], ele está legitimando esse latifúndio predador que vai enriquecer com terras públicas aqui. Ou quando nós pegamos a Nestlé, que se apropria de água do lençol freático, ela está se apropriando de um bem da natureza que devia ser de todo mundo, e acumula um lucro extraordinário. Depois, nós temos o modelo do agronegócio, cantado em verso e prosa todas as noites no Jornal Nacional. Quem financia a propaganda do “agro é pop” é banco e empresa automobilística estrangeira. Esse é o modelo do agronegócio e há uma grande aliança dos bancos com as empresas transnacionais, que aplicam na grande propriedade e também na média propriedade.
Então, nós temos hoje 30 mil fazendeiros acima de mil hectares que adotam o agronegócio. E nós temos também uns 300 mil fazendeiros pequenos e médios, de 100 a mil hectares, que também adotam o modelo do agronegócio. O cara só se especializa num produto, faz uso intensivo de agrotóxico, o uso de sementes transgênicas que ele compra de uma multinacional lá, o uso de mecanização intensiva, que também ele compra de uma multinacional e ele produz commodities para o mercado externo.
Então, é um modelo extemporâneo às necessidades da população. Aí o pessoal fica dizendo que a economia brasileira depende do agronegócio. Tenha a santa paciência! É a economia brasileira, o Estado brasileiro que financia o agronegócio. E quem ganha dinheiro?
Esses fazendeiros, o poder político deles é tão grande que eles não pagam nada de imposto. Nós, nos nossos exercícios teóricos, pegamos o caso do milho e o caso da soja no agronegócio. Porque a Conab [Companhia Nacional de Abastecimento] faz o custo de produção todos os anos por região. Se tu pegar uma média, da soja, por exemplo, 68% da renda produzida volta para as empresas transnacionais que fornecem os insumos, que são os que mais ganham.
Recentemente, veio a público que o capital acessado pelo agronegócio no mercado financeiro chega próximo a R$ 1 trilhão. Então esse dinheiro do Plano Safra é uma merreca. Eles não dependem mais dele, não. Mas revela a total dependência do agronegócio com o capital financeiro, porque daí as empresas adiantam os insumos, adiantam a semente e depois cobram a renda em produtos.
FONTE
JOÃO PEDRO STEDILE
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